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Diálogo ininterrompido


Luiz Francisco Rebello





Terminava o ano de 1953, um ano que me deixaria fundas recordações. Logo em Janeiro estreava-se em Paris, no Teatro de la Huchette, o meu Dia Seguinte, que a Censura não havia deixado transpor o cabo do ensaio geral no ano anterior. Em Abril a mesma peça partilhava o programa do Teatro de Câmara de Valência como outro drama num acto, As Palavras Escritas na Areia, de Antonio Buero Vallejo. E num dos últimos dias do ano assisti à representação, no Teatro Alcazar de Madrid, da Madrugada, de Buero, que então conheci pessoalmente. Foi o inicio de uma amizade que se fortaleceu com o tempo e se manteve inalterada ao longo de quase meio século.

Creio bem que, desde esse ano distante de 1953, não terei ido uma única vez à capital espanhola sem que nos encontrássemos. Éramos ambos militantes apaixonados das mesmas causas -o Teatro e a Liberdade (assim mesmo, com maiúsculas). E o facto de havermos casado os dois, no mesmo ano, com actrizes -ele com Victória Rodriguez, eu com Mariana Vilar- ainda mais nos aproximava. Mais raros terão sido os nossos encontros fora de Espanha -Buero não gostava de viajar. Lembro-me de ele ter vindo por duas vezes a Lisboa: em 1959, quando a Companhia Lope de Vega trouxe ao Teatro de Trindade Um Sonhador para Um Povo (e Victoria era uma das intérpretes), em finais de 1973, quando no mesmo teatro se representou O Concerto de Santo Ovidio, que eu traduzira. Lembro-me das reuniões internacionais em que ambos participámos, e em que a denúncia de Censura onmipresente nos nossos dois países era o tom dominante as nossas intervenções. Vi em Madrid muitas das suas peças, e uma delas O Sonho da Razão, em Varsóvia, encenada por Andrzej Wajda. Sobre elas, sobre ele, escrevi alguns artigos -o último há cerca de um ano, neste mesmo jornal, a propósito da triunfal reposição no Teatro María Guerrero, de uma das mais belas, A Fundacão, que pôs as gerações mais novas em contacto com um dos maiores autores de toda a história do teatro espanhol. E correspondemo-nos assiduamemte, comunicando emoções frustações (muitas) e alegrias (algumas).

Não é um necrológio que estou a escrever. Não saberia fazê-lo. Nem ele o desajaria. Buero está vivo na sua obra, a sua verticalidade de homem inteiro, -«todo un hombre», diría Unamuno, ressalta de cada peça que escreveu, de cada cena, de cada réplica do seu teatro. Com ele nasceu, é um lugar comun dizê-lo, o moderno teatro espanhol: com a História de Uma Escada, sua primeira peça a estrear-se, os vencidos da guerra civil fizeram ouvir, pela primeira vez, a sua voz num palco espanhol. E, diversamente modulada, em linguagem directa ou alusiva, por vezes através da máscara da História (Esquilache, Goya, Velázquez, Larra...), nunca mais desde então deixou de fazer-se ouvir, misturando a raiva e a esperança, a dor e o sonho.

Recordo o grande dramaturgo. Sem dúvida. Mas recordo, sobretudo, neste momento de amargura e despedida, o homem e o amigo incomparável, e gostaria de saber dizer as palavras repassadas de comovida afeição que me dirigiu quando perdi, há dois anos, a companheira admirável de toda a minha vida. Se, na tela da memória, perpassam uma e mais vezes as personagens do seu teatro, com que me familiarizei ao lê-lo ou ao vê-lo representado, o que avulta agora ao evocá-lo são os momentos de fraterna convivência que tive -que tivemos- o privilégio de com ele partilhar. E é como se o nosso diálogo continuasse.





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