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Marcha da divisão auxiliar

Os novos expedicionários abalando de Monte Santo pela estrada recém-aberta, levavam um temor singularmente original: o medo cruelmente ansioso de não depararem mais um só jagunço a combater. Certo iam encontrar tudo liquidado; e sentiam-se escandalosamente traídos pelos acontecimentos.

Partira em primeiro lugar, a 13 de setembro, a brigada dos corpos policiais do Norte, e tal precedência, oriunda exclusivamente de motivos de ordem administrativa, doera fundo no ânimo dos que compunham a brigada de linha, que marcharia alguns dias mais tarde, com o general Carlos Eugênio.

Medo glorioso

É que os rebeldes decaíam tanto todos os dias, tão cheios de reveses e repelidos dos melhores pontos de apoio, e tão enleados nas malhas constritoras do cerco, que cada hora passada era para o heroísmo retardatário crudelíssimo diminuir nas probabilidades de compartir as glorificações do triunfo.

A brigada nortista fez, por isto, um avançar vertiginoso, tropeando pelos caminhos desde o primeiro alvor da antemanhã e estacando somente quando as soalheiras queimosas esgotavam a soldadesca. A de linha encalçou-a, copiando a mesma celeridade, marchando aforradamente, aguilhoada identicamente pelo anelo doido de se medir, ao menos num recontro fugitivo, com aqueles pobres adversários.

E arrojando-se pelos caminhos, os campeadores -nutridos, garbosos e sãos- lá se iam de abalada demandando a cidadela de barro, havia três meses varrida pelos canhoneios, rota pelos assaltos, devorada pelos incêndios e defendida por uma guarnição única.

Ao alcançarem o sítio da Suçuarana, seis léguas distante de Canudos, reanimavam-se. Chegavam até lá, soturnamente reboando, os estampidos da artilharia. Em Caxomongó, se o vento era de feição, distinguiam mesmo o crebro crepitar dos tiroteios...

Caxomongó

Entretanto nessa alacridade guerreira despontavam ainda inopinados sobressaltos. A luta sertaneja não perdera por completo o traço misterioso, que conservaria até o fim. Avantajando-se no sertão, os sôfregos lutadores, à medida que se sentiam cada vez mais longe entre as chapadas ermas, passando pelos sítios tristonhos e destruídos -em pleno deserto- tinham entre as fileiras aguerridas irrefreáveis frêmitos de espanto. Fui testemunha de um deles.

A brigada do coronel Sotero chegara no terceiro dia de marcha, a 15 de setembro, ao sítio de Caxomongó, à entrada da zona perigosa. A escala para quem vinha de Boa Esperança, numa várzea desimpedida rodeada de pinturescas serranias, ou da Suçuarana, à borda de uma ipueira farta, era estéril e lúgubre. O terreno, de grés vermelho e grosseiro, de estratos exageradamente inclinados de 45º, absorvendo logo, em virtude de tal disposição, as raras chuvas que ali tombam, engravescera a dureza da caatinga.

O sítio, um pouso miserável, surge à borda do rio, e este, um valo de ribanceiras a prumo, altas de três metros, inteiramente entupido de pedras de todos os tamanhos, inteiramente seco, desaparece logo metendo-se entre colinas pouco altas e nuas.

A tropa ali chegou em plena manhã. Os dous corpos do Pará, disciplinados como os melhores de linha, e o do Amazonas, com o uniforme característico que adotara desde a Bahia: cobertos, oficiais e soldados, de grandes chapéus de palha de carnaúba, desabados, dando-lhes aparência de numeroso bando de mateiros.

Apesar da hora matinal, como encontrassem água bastante numa cacimba próxima, profundíssima e escura, lembrando a boca de uma mina, acamparam. Era a última escala. No outro dia atingiriam o arraial. A paragem morta reanimou-se então, de súbito, cheia de tendas e barracas, armas em sarilhos, e a animação ruidosa de 968 combatentes. Pelas margens do rio alteavam-se ingaranas altas, cruzando-lhe as ramagens ainda enfolhadas sobre o leito. Armaram-se por ali fora, suspensas, à maneira de redouças oscilantes nos galhos flexíveis, dezenas de redes.

E o dia derivou tranqüilamente.

Nada haviam a temer-se.

Desceu a noite. Ouvia-se, muito longe, ao norte, soturno e compassado, rolando surdamente no silêncio, o bombardeio de Canudos...

O inimigo ali constrito não tinha mais alentos para aventurosas algaras nos caminhos. A noite, como o dia, derivaria na mais completa placidez. Mas dado que aparecessem, os jagunços viriam ao encontro de ainda não satisfeito anelo.

Rebate falso

E a tropa adormeceu cedo, em paz... para despertar toda, às 10 horas da noite, num abalo único.

Detonara, no flanco esquerdo, um tiro. Uma sentinela do cordão de segurança, que se estendera em torno dos abarracamentos, lobrigara ou julgara lobrigar vulto suspeito deslizando na sombra; e disparara a espingarda. Era, certo, o inimigo anelado. Vinha como viera sobre outros expedicionários, de improviso, num arranco atrevido, e subitâneo, e célere.

Então sobre os que ansiavam tanto a medir-se com ele passou, alucinadoramente, a visão misteriosa da campanha. Avaliaram-na de perto. Dominou para logo os batalhões a hipnose de um espanto indescritível; estridularam cornetas, gritos de alarmas, brados de comandos, inquirições ansiosas; despencaram das redes, caindo sobre o lastro do rio, oficiais surpresos, pulando-lhe, às tontas, as bordas; esbarrando-se; caindo; precipitando-se -espadas desembainhadas, revólveres erguidos- entre as fileiras que se alinhavam num longo crepitar de estalidos de baionetas armando-se. E desencadeou-se o tumulto. Pelotões e companhias formando-se ao acaso; quadrados precipitadamente feitos como esperando cargas de cavalaria; seções de armas cruzadas prontas a carregarem contra o vácuo; e entre as seções, e os pelotões, e as companhias, parte dos combatentes pervagando, correndo, em busca da formatura embaralhada...

Transcorridos minutos, os lutadores, presos de uma emoção que jamais imaginaram sentir, aguardavam o assalto. A brigada aparecia como uma longa esteira, revolta e coruscante, na onda luminosa do luar tranqüilo e grande, que abrangia a natureza adormecida e quieta.

E fora um rebate falso...

Em busca de meia ração de glória

Ao amanhecer extinguiam-se os temores. Volviam à impaciência heróica. Prosseguiam rápidos. Rompiam, intrêmulos, por dentro do valo sinuoso do Rio Sargento, que desbordava numa enchente repentina de fardas. Galgavam logo adiante o morro desnudo cujas vertentes opostas abruptamente caíam para o vale de Umburanas. E tinham, de surpresa, na frente e embaixo, distante dous quilômetros -Canudos...

Era um desafogo. Lá estavam as duas igrejas derruídas fronteando-se na praça lendária: -a nova sem torres, alteando as paredes mestras arrombadas, fendidas de alto a baixo, num muradal cheio de entulhos; a velha em ruínas e denegrida, sem fachada, erguendo um pedaço do campanário derruído, onde o fantástico sineiro tantas vezes apelidara os fiéis para a oração e para o combate. Em volta a casaria unida. Tinham chegado a tempo. Já agora não lhes faltaria a meia ração de glória disputada. Entravam ovantes pelo acampamento, num belo aprumo de candidatos à História, procurando o pleito sanguinolento e fácil.

Aspecto do acampamento

O acampamento mudara; perdera a aparência revolta dos primeiros dias. Era como um outro arraial despontando a ilharga de Canudos. Atravessando o leito vazio do Vaza-Barris, os recém-vindos enveredavam por uma sanga flexuosa; topavam, a meio caminho, à direita, entranhado em larga reentrância, vasto alpendre coberto de couro -o hospital de sangue-; e a breve trecho atingiam a tenda do comandante-geral.

Nesse trajeto viam-se dentro de um novo povoado.

Havia-se reconstruído o bairro conquistado. De uma e outra banda do caminho, erectas ao viés das encostas, arruadas ou acumuladas pelos vales diminutos, pintalgando, numerosas e esparsas, o tom pardo dos abarracamentos, sucediam-se pequenas casas de aspecto original e festivo -feitas todas de folhagens, tetos e paredes verdes de ramas de juazeiros, de forma singularmente imprópria aos habitadores. Mas eram as únicas ajustáveis ao meio. A canícula abrasante, transmudando as barracas em fornos adurentes, inspirada aquela arquitetura bucólica e primitiva.

Nada que denunciasse, ao primeiro lance de vistas, a estadia de um exército. Tinha-se a impressão de chegar em vilarejo suspeito dos sertões. E encontrando-se os primeiros povoadores -homens à paisana, mal compostos, arrastando espadas e sobraçando espingardas; na maior parte cobertos de chapéus de couro com presilhas; descalços ou calçando alpercatas; e, num ou noutro ponto, mulheres maltrapilhas cosendo tranqüilamente às portas ou passando arcadas sob achas de lenhas, completava-se a ilusão. O estranho entrava a desconfiar que um engano na rota o havia desnorteado para o meio dos jagunços -até atingir a tenda do general, mais longe. Galgado o cerro em cujo sopé esta se erigia, chegava-se, no topo, à comissão de engenharia, em casebre que não fora destruído; e metido o olhar pelos resquícios das paredes espessadas de rachões de pedra, via-se, de perto, dali cem metros, a praça das igrejas. Estava-se sobre a encosta que tinha à base as paliçadas e palancas do trecho mais perigoso do sítio, centralizado pelo 25º Batalhão -a linha negra- lado por onde entrara mais fundo nos flancos do arraial o assalto de 18 de julho. Volvendo à esquerda, sob o anteparo da linha descontínua de choupanas por ali dispersas, passava-se, dados mais alguns passos, pelo quartel-general da 1ª coluna. Descia-se a vertente sul seguindo por um releixo coleante, tendo à meia encosta, noutro casebre exíguo, o da segunda. Chegava-se à Repartição do Quartel-Mestre-General e acampamento do Batalhão Paulista, embaixo, numa planura arenosa, que o Vaza-Barris alaga nas enchentes. Continuando a rota, depois de atravessar o leito daquele sob o abrigo do espaldão de pedra, abarreirando-o de uma margem à outra e guarnecido pelo 26º, alcançava-se a tranqueira extrema do cerco prolongada pelo 5º da Bahia distendido na acanaladura funda do Rio da Providência. Dali duzentos metros, atentando para a esquerda contemplava-se, alcandorada no alto, bojando na corcova da Fazenda Velha, à maneira de um baluarte pênsil -a trincheira Sete de Setembro.

Percorrendo desse modo a cercadura dos entrincheiramentos, os novos expedicionários tinham, nítida, a situação, traduzindo-se o exame feito num diluente do otimismo anterior. Aquele segmento do sítio era ainda escasso se o defrontavam com a amplitude do arraial. Este surpreendia-os. Afeitos às proporções exíguas das cidades sertanejas, tolhiças e minúsculas, assombrava-os aquela Babilônia de casebres, avassalando colinas.

Canudos tinha, naquela ocasião, -foram uma a uma contadas depois- cinco mil e duzentas vivendas; e como estas, cobertas de tetos de argila vermelha, mesmo nos pontos em que se erigiam isoladas mal se destacavam, em relevo, no solo, acontecia que as vistas, acomodadas em princípio ao acervo de pardieiros compactos em torno da praça, se iludiam, avolumando-a desproporcionalmente. A perspectiva era empolgante. Agravava-a o tom misterioso do lugar. Repugnava admitir-se que houvesse ali embaixo tantas vidas. A observação mais afincada, quando transitório armistício a permitia, não lograva distinguir um vulto único, a sombra fugitiva de um homem; e não se ouvia o rumor mais fugaz. Lembrava uma necrópole antiga ou então, confundidos todos aqueles tetos e paredes no mesmo esboroamento -uma cata enterroada e enorme, roída de erosões, abrindo-se em voçorocas e pregueando-se em algares.

Que o observador, porém, não avultasse demais sobre o parapeito: as balas ressaltando a súbitas, de baixo, revelavam-lhe, de pronto, a população entocada. Bastava que um disparo qualquer, a qualquer hora, atroasse o alto do morro para que dali refluísse, inevitável, o revide imediato. Porque os jagunços, se não tinham mais a iniciativa dos ataques, replicavam com o vigor antigo. Exauriam-se sem perder o aprumo, timbrando no disfarçar quaisquer sintomas de enfraquecimento. Compreendia-se, no entanto, que este era completo. Objetivavam-no os próprios escombros em que se entaliscavam, ocultos. Além disso lá não estava apenas uma guarnição de valentes incorrigíveis. Havia mulheres e crianças sobre que rolavam durante três meses massas de ferro e de chamas, e elas punham muitas vezes no fragor das refregas a nota comovedora do pranto.

Dias antes um shrapnel arrojado da Favela, e que passara beirando as cimalhas da igreja nova, arrebentara dentro do casario anexo à latada das orações. E dali ascendera imediatamente uma réplica cruel perturbando os artilheiros do coronel Olímpio: um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, fazendo que o canhoneio cessasse à voz austera e comovida daquele comandante...

Assim, duplamente bloqueados, entre milhares de soldados e milhares de mulheres -entre lamentações e bramidos, entre lágrimas e balas- os rebeldes se renderiam de um momento para outro. Era fatal. A segurança do pleito já dera mesmo ensanchas a grandes temeridades. Um sargento do 5º de Artilharia por duas vezes se aventurara, à noite, a atravessar todo o largo penetrando no templo em ruínas e atirando lá dentro duas bombas de dinamite, que não explodiram. Um alferes do 25º, dias depois, copiando-lhe o arrojo, lançara fogo aos restos da igreja velha, que ardera toda.

De sorte que os lutadores, vindo noviciar na pendência desigual, cientes destas cousas, recaíam na preocupação primitiva: que o inimigo in extremis tivesse ainda fôlego para lhes facultar, desdobrassem o destemor e a força. A musculatura de ferro das brigadas novas ansiava a medir-se com o espernear da insurreição. Os que ali estavam havia tantos meses tinham glórias demais. Fartos, impando de triunfos e agora, mercê dos comboios diários, com a subsistência garantida, julgavam inútil despender mais vidas para que se apressasse a rendição inevitável. Quedavam numa mornidão irritante.

O acampamento, afora os intervalos, que se tornavam maiores, dos assaltos, tinha a placabilidade de uma pequena povoação bem policiada. Nada que recordasse a campanha feroz. Na sede da comissão de engenharia o general Artur Oscar, com a atração irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas palestras. Discorria-se sobre assuntos vários de todo opostos à guerra: casos felizes d'antanho, anedotas hílares, ou então alentadas discussões sobre política geral. Enquanto observadores tenazes, num invejável apego à ciência, registravam, hora por hora, pressões e temperaturas; inscreviam, invariável, um zero na nebulosidade do céu; e consultavam muito graves o higrômetro. Na farmácia militar, estudantes em férias forçadas riam ruidosamente e recitavam versos; e pelas paredes ralas de todas as choupanas ridentes, de folhagens pintalgadas de flores murchas de juazeiros, transudavam vozes e risos dos que lá dentro não tinham temores, que lhes agourentassem as horas ligeiras e tranqüilas. As balas que passavam, raras, repelidas pelas cristas dos cerros em trajetórias altas, eram inofensivas. Ninguém as percebia mais. Eram, indicava-o a precisão rítmica com que estalavam ou esfusiavam nos ares, lançadas por atiradores certos, que em Canudos parecia estarem apostados a lembrar os sitiantes que o sertanejo velava. Mas não impressionavam, embora algumas, em trajectórias baixas, batessem no pano das barracas em vergastadas rijas; como não impressionavam mais os tiroteios fortes, que ainda surgiam, às vezes, inopinadamente, à noite.

A vida normalizara-se naquela anormalidade. Despontavam peripécias extravagantes. Os soldados da linha negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços. O interlocutor da nossa banda subia à berma da trincheira e, voltando para a praça, fazia ao acaso um reclamo qualquer, enunciando um nome vulgar, o primeiro que lhe acudia ao intento, com voz amiga e lhana, como se apelidasse algum velho camarada; e invariavelmente, do âmago da casaria ou, de mais perto, de dentro dos entulhos das igrejas, lhe respondiam logo, com a mesma tonalidade mansa, dolorosamente irônica. Entabulava-se o colóquio original através das sombras, num reciprocar de informações sobre tudo, do nome de batismo, ao lugar do nascimento, à família e às condições da vida. Não raro a palestra singular derivava a cousas escabrosamente jocosas e pelas linhas próximas, no escuro, ia rolando um cascalhar de risos abafados. O diálogo delongava-se até apontar a primeira divergência de opiniões. Salteavam-no, então, de lado a lado, meia dúzia de convícios ríspidos, num calão enérgico. E logo depois um ponto final -a bala...

Os soldados do 5º de Polícia, malgrado ao ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o tempo, em descantes mitigando saudades dos rincões do S. Francisco. Se a fuzilaria apertava, pulavam de arremesso aos planos de fogo; batiam-se como demônios, terrivelmente, freneticamente, disparando as carabinas; e tendo nas bocas, ressoantes, cadenciadas a estampidos, as rimas das trovas prediletas. Baqueavam, alguns, cantando; e aplacada a refrega volviam ao folguedo sertanejo, ao toar langoroso das tiranas, aos rasgados nos machetes, como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando.

O charlatanismo da coragem

Toda a gente se adaptara à situação. O espetáculo diário da morte dera-lhe a despreocupação da vida. Os antigos lutadores andavam, por fim, pelo acampamento inteiro, da extrema direita à extrema esquerda, sem as primitivas cautelas. Ao chegarem aos altos expostos mal estugavam o passo ante os projetis, que lhes caíam logo à roda, batendo, ríspidos, no chão. Riam-se dos recém-vindos inexpertos, que transpunham os pontos enfiados, retransidos de sustos, correndo, encolhidos, quase de cócaras, num agachamento medonhamente cômico; ou que não refreavam sobressaltos ante a bala que esfusiava perto, riscando um assovio suavíssimo nos ares, como um psiu insidiosamente acariciador da morte; ou que não tolhiam interjeições vivas ante incidentes triviais -dous, três ou quatro moribundos, diariamente removidos dos pontos avançados.

Alguns estadeavam o charlatanismo da coragem. Um esnobismo lúgubre. Fardados -vivos dos galões irradiantes ao Sol, botões das fardas rebrilhando- quedavam numa aberta qualquer livremente devassada ou aprumavam-se, longe, no cabeço desabrigado de um cerro distante dous quilômetros do arraial, para avaliarem o rigor da mira dos jagunços em alcance máximo. Calejara-os a luta. Narravam aos novos companheiros, insistindo muito nos pormenores dramáticos, as provações sofridas. Os episódios sombrios da Favela com o seu cortejo temeroso de combates e agruras. Os longos dias de privações que vitimavam os próprios oficiais, um alferes, por exemplo, morrendo embuchado, ao desjejuar com punhados de farinha após três dias de fome. As lides afanosas das caçadas aos cabritos ariscos ou das colheitas de frutos avelados nos arbustos mortos. Todos os incidentes. Todas as minúcias. E concluíam que o que restava fazer era pouco -um magro respigar no rebotalho da seara guerreira inteiramente ceifada- porque o antagonista desairado e frágil estertorava agonizando. Aquilo era agora um passatempo ruidoso, e nada mais.

A Divisão Auxiliar, porém, não podia ater-se a papel tão secundário: fazer trinta léguas de sertão, apenas para contemplar -espectadora inofensiva e armada dos pés à cabeça- o perdimento do arraial cedendo a pouco e pouco àquele estrangulamento vagaroso, sem a movimentação febril e convulsiva de uma batalha...

Embaixada ao céu

Mas o bloqueio, incompleto e com extenso claro ao norte, não reduzira o inimigo aos últimos recursos. Os caminhos para a Várzea da Ema e o Uauá estavam francos, subdividindo-se multívios pelas chapadas em fora, para a extensa faixa do S. Francisco, atravessando rincões de todo desconhecidos, até atingirem os insignificantes lugarejos marginais àquele rio, entre Xorroxó e Santo Antônio da Glória. Por ali chegavam pequenos fornecimentos e poderiam entrar, à vontade, novos reforços de lutadores. Porque se dirigiam precisamente nos rumos mais favoráveis, atravessando vasto trato de um território que é o núcleo onde se ligam e se confundem os fundos dos sertões de seis estados, da Bahia ao Piauí.

Desse modo formavam aos sertanejos a melhor saída, levando-os à matriz em que se haviam gerado todos os elementos da revolta. Em último caso, eram um escape à salvação. A população, trilhando-os, mal seria perseguida nas primeiras léguas, na pior alternativa. Abrigá-la-ia -impérvio e indefinido- o deserto.

Não o fez, porém, embora sentisse acrescida, em torno, a força dos adversários, coincidindo-lhe com o próprio deperecimento. Haviam desaparecido os principais guerrilheiros: Pajéu, nos últimos combates de julho; o sinistro João Abade, em agosto; o ardiloso Macambira, recentemente; José Venâncio e outros. Restavam como figuras principais Pedrão, o terrível defensor de Cocorobó, e Joaquim Norberto, guindado ao comando pela carência de outros melhores. Por outro lado, escasseavam os mantimentos e acentuava-se cada vez mais o desequilíbrio entre o número de combatentes válidos, continuamente diminuído e o de mulheres, crianças, velhos, aleijados e enfermos, continuamente crescente. Esta maioria imprestável tolhia o movimento dos primeiros e reduzia os recursos. Podia fugir, escoar-se a pouco e pouco, em bandos diminutos, pelas veredas que restavam deixando aqueles desafogados e forrando-se ao último sacrifício. Não o quis. De moto próprio todos os seres frágeis e abatidos, certos da própria desvalia, se devotaram a quase completo jejum, em prol dos que os defendiam. Não os deixaram.

A vida no arraial tornou-se então atroz. Revelaram-na depois a miséria, o abatimento completo e a espantosa magreza de seiscentas prisioneiras. Dias de angústias indescritíveis foram suportados diante das derradeiras portas abertas para a liberdade e para a vida. E permaneceriam para todo o sempre inexplicáveis, se, mais tarde, os mesmos que os atravessaram não revelassem a origem daquele estoicismo admirável. É simples.

Falecera a 22 de setembro Antônio Conselheiro.

Ao ver tombarem as igrejas, arrombado o santuário, santos feitos em estilhas, altares caídos, relíquias sacudidas no encaliçamento das paredes e -alucinadora visão!- o Bom Jesus repentinamente a apear-se do altar-mor, baqueando sinistramente em terra, despedaçado por uma granada, o seu organismo combalido dobrou-se ferido de emoções violentas. Começou a morrer. Requintou na abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E imobilizou-se certo dia de bruços, a fronte colada à terra, dentro do templo em ruínas.

Ali o encontrou numa manhã Antônio Beatinho.

Estava rígido e frio, tendo aconchegado do peito um crucifixo de prata.

Ora, este acontecimento -capital na história da campanha- e de que parecia dever decorrer o seu termo imediato, contra o que era de esperar aviventou a insurreição. É que, gizada talvez pelo espírito astucioso de algum cabecilha, que prefigurara as conseqüências desastrosas do fato, ou, o que se pode também acreditar, nascida espontaneamente da hipnose coletiva, logo que a beataria impressionada notou a falta do apóstolo, embora este nos últimos tempos aparecesse raras vezes -se divulgou extraordinária notícia.

Relataram-na depois, ingenuamente, os vencidos:

Antônio Conselheiro seguira em viagem para o céu. Ao ver mortos os seus principais ajudantes e maior o número de soldados, resolvera dirigir-se diretamente à Providência. O fantástico embaixador estava àquela hora junto de Deus. Deixara tudo prevenido. Assim é que os soldados, ainda quando caíssem nas maiores aperturas, não podiam sair do lugar em que se achavam. Nem mesmo para se irem embora, como das outras vezes. Estavam chumbados às trincheiras. Fazia-se mister que ali permanecessem para a expiação suprema, no próprio local dos seus crimes. Porque o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos descendo -gládios flamívomos coruscando na altura- numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o dia do Juízo...

Desoprimiram-se todas as almas; dispuseram-se os crentes para os maiores tratos daquela penitência, que os salvava; e nenhum deles notou que logo depois, sob pretextos vários, alguns incrédulos, e entre eles Vila-Nova, abandonavam a povoação, tomando por ignoradas trilhas.

Saíam ainda em tempo. Eram os últimos que escapavam porque no dia 24 a situação mudou.

Complemento do assédio

Logo ao alvorecer, enquanto a esquerda da linha e os canhões da Favela iniciavam renhido ataque atraindo para aquele lado a atenção do inimigo, o tenente-coronel Siqueira de Meneses, seguido pelos 24º, 38º e 32º Batalhões de linha, comandados pelo major Henrique de Magalhães, capitão Afonso Pinto de Oliveira e tenente Joaquim Potengi; o do Amazonas; a ala direita do de S. Paulo, guiada pelo major José Pedro de Oliveira; e um contingente de cavalaria ao mando do alferes Pires de Almeida -abalara para o segmento ainda desguarnecido do assédio, assaltando os pequenos contingentes que o guarneciam dentro das últimas vivendas, que se derramavam, esparsas, por aquela banda.

Os jagunços não contavam que fossem até lá. Era o ponto de Canudos diametralmente oposto à Fazenda Velha e mais distante da primitiva frente do assalto.

Via-se ali um subúrbio novo, as Casas Vermelhas, erecto depois do fracasso da 3ª expedição, e nele edificações mais corretas, cobertas, algumas, de telhas. Não estava guarnecido convenientemente. Faltavam-lhe as trincheiras-abrigos, que abrolhavam tão numerosas noutros pontos, e, circunstância na emergência desastrosa para os rebeldes, todas as vivendas pelo fato de serem as mais remotas se atestavam de mulheres e crianças.

A força tendo à vanguarda o 24º, marchando pelo leito do rio, caiu-lhes em cima e varejou-as em minutos. Como em geral acontecia, os guerrilheiros viram-se tolhidos na balbúrdia do mulherio medroso. Entretanto não cederam desde logo a posição. Recuaram, resistindo; e acompanhando-os os soldados foram embrenhando-se nas vielas.

Tomando a ofensiva, reeditavam episódios inevitáveis. Enfiavam as espingardas pelos tabiques de taipa, disparando-as, a esmo, para dentro; arrombavam-nos depois a coronhadas; e sobre a acendelha de trapos e móveis miseráveis, atiravam fósforos acesos. Os incêndios deflagravam, abrindo-lhes caminho. Adiante recuava o sertanejo, recuando pelos cômodos escusos. Aqui, ali, destacadamente uma resistência estupenda de um ou outro, jogando alto a vida. Um deles, abraçado pela esposa e a filha, no momento em que a porta da choupana se escancarou, estrondada em lascas, atirou-as rudemente de si: assomou de um salto ao limiar e abateu, num revide terrível, o primeiro agressor que deparou, um alferes, Pedro Simões Pinto, do 24º. Baqueou logo, circulado pelos soldados, a cutiladas. E ao expirar teve uma frase lúgubre: «Ao menos matei um...»

Outro distraiu os soldados. Episódio truanesco e medonho: num recanto da saleta invadida, caído de banda, sem alento sequer para sentar-se, adelgaçado de magreza extrema, um curiboca velho, meio desnudo, revestido de esparadrapos, forcejava por disparar uma lazarina antiga. Sem forças para aperrá-la, levantava-a a custo. Deixava-a logo descair nos braços frouxos, desesperado, refegada a face ossuda, num esgar de cólera impotente. As praças rodearam-no um momento; e seguiram num coro estrepitoso de risadas.

Mas este resistir a todo o transe, em que entravam os próprios moribundos, cortou-lhes, afinal, o passo. Em pouco tempo tiveram treze baixas. Além disto o adversário recuava, mas não fugia. Ficava na frente, a dous passos, na mesma vivenda, no cômodo próximo, separado por alguns centímetros de taipa. Estacaram. Para não perderem o avançamento feito abarreiraram, com os móveis e destroços das casas, toda a frente da posição. Era o processo usual e obrigatório.

Defronte não havia terreno neutro. O jagunço ficava colado -indomável- na escarpa oposta do parapeito, vigilante tenteando a pontaria.

Cenário de tragédia

Esta refrega, atroando ao norte, ecoava no acampamento, alarmando-o. Atestadas de curiosos, todas as casinhas adjacentes à comissão de engenharia formavam a platéia enorme para a contemplação do drama. Assestavam-se binóculos em todos os rasgões das paredes. Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos. A cena -real, concreta, iniludível- aparecia-lhes aos olhos como se fora uma ficção estupenda, naquele palco revolto, no resplendor sinistro de uma gambiarra de incêndios. Estes progrediam constrangidos, ao arrepio do sopro do nordeste, esgarçando-lhes a fumarada amarelenta, ou girando-a em rebojos largos em que fulguravam e se diluíam listrões fugazes de labaredas. Era o sombreado do quadro, abrangendo-o de extremo a extremo e velando-o de todo, às vezes, como o telão descido sobre um ato de tragédia.

Nesses intervalos desaparecia o arraial. Desaparecia inteiramente a casaria. Diante dos espectadores estendia-se, lisa e pardacenta, a imprimadura, sem relevos, do fumo. Recortava-a, rubro e sem brilhos, -uma chapa circular em brasa- um Sol bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de súbito, uma lufada rija. Pelo rasgão enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma nesga do arraial -bandos estonteados de mulheres e crianças correndo para o sul, em tumulto, indistintos entre as folhagens secas da latada. As baterias da Favela batiam-nos de frente. Os grupos miserandos, entre dous fogos, fustigados pela fuzilaria, repelidos pelo canhoneio, desapareciam, por fim, entaliscados nos escombros, ao fundo do santuário. Ou escondiam-nos outra vez, promanando da combustão lenta e inextinguível e rolando vagarosamente sobre os tetos, os novelos do fumo, compactos, em cumulus, alongando-se pelo solo, empolando-se altura, num tardo ondular de grandes vagas silenciosas, adensando-se e desfazendo-se à feição dos ventos; chofrando a frontaria truncada da igreja nova, deixando lobrigar-se um pedaço de muramento esboroado, e encobrindo-o logo; dissolvendo-se adiante sobre um trecho deserto do rio; espraiando-se mais longe, delidos, pelo topo dos outeiros...

As vistas curiosas dos que pelo próprio afastamento não compartiam a peleja coavam-se naquele sendal de brumas. E quando estas se adunavam impenetráveis, em toda a cercadura de camarotes grosseiros do monstruoso anfiteatro explodiam irreprimíveis clamores de contrariedades e desapontamentos de espectadores frenéticos, agitando os binóculos inúteis, procurando adivinhar o enredo inopinadamente encoberto.

Porque a ação se delongava. Delongava-se anormal, sem o intermitir das descargas intervaladas, o tiroteio cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de tabocas estourando nos taquarais em fogo. De sorte que, por vezes, pairava no ânimo dos que o escutavam, ansiosos, o pensamento de uma sortida feliz dos sertanejos, saindo pelas tranqueiras rotas ao norte. Os ecos dos estampidos, variando de rumos, torcidos em ricochete pelos flancos das colinas, subindo de intensidade no nevoeiro compacto, desviavam-se. Estalavam-lhes perto, à direita e à retaguarda, dando a ilusão de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se, em tropel, num revide repentino. Trocavam-se ordens precípites. Formavam-se os corpos de reserva. Cruzavam-se inquirições comovidas...

Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas. Corria-se aos mirantes acasamatados. Retomavam-se os binóculos. Uma rajada corria, em sulco largo e límpido, pela cerração dentro, talhando-a de meio a meio, e desvendando de novo o cenário.

Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam.

Por fim se viu, estirando-se até ao caminho do Cambaio, uma linha de bandeirolas vermelhas.

Estava bloqueado Canudos.

A nova chegou em pouco ao acampamento de onde largaram, à espora fita, correios para Monte Santo, levando-a, para que de lá o telégrafo a espalhasse no país inteiro.

Circuitava agora toda a periferia do povoado uma linha interrompida de tranqueiras, nos intervalos das quais não havia escoar-se mais um único habitante: a leste, o centro do acampamento; à retaguarda da linha negra, centralizada pela 3ª Brigada; ao norte, as posições recém-expugnadas, alongando-se guarnecidas sucessivamente pelo 31º, ala esquerda do 24º, 38º, ala direita do Batalhão Paulista e o 32º, de Infantaria, cortando as estradas do Uauá e a Várzea da Ema; em todo o quadrante do noroeste, guarnições espaçadas, ladeando o redente artilhado no extremo da vereda do Cambaio; a Favela e o baluarte dominante da Sete de Setembro, ao sul.

Ainda que em fragmentos, traçara-se a curva fechada do assédio real, efetivo.

A insurreição estava morta.

Últimos dias

O estrebuchar dos vencidos

Sucedeu, então, um fato extraordinário de todo em todo imprevisto.

O inimigo desairado revivesceu com vigor incrível. Os combatentes, que o enfrentavam desde o começo, desconheceram-no. Haviam-no visto, até aquele dia, astucioso, negaceando na maranha das tocaias, indomável na repulsa às mais valentes cargas, sem par na fugacidade com que se subtraía aos mais improvisos ataques. Começaram a vê-lo heróico.

A constrição de milhares de baionetas circulantes estimulara-o, enrijara-o; e dera-lhe, de novo, a iniciativa nos combates. Estes principiaram desde 23, insistentes como nunca, sulcando todos os pontos, num rumo girante, estonteador, batendo, trincheira por trincheira, toda a cercadura do sítio.

Era como uma vaga revolta, desencadeando-se num tumulto de voragem. Repelida pelas tranqueiras avançadas de leste, refluía numa esteira fulgurante de descargas na direção do Cambaio; arrebentava nas encostas que ali descem, clivosas, para o rio; recebia, em cima e em cheio, a réplica das guarnições que as encimavam, e rolava, envesgando para o norte, acachoando dentro do álveo do Vaza-Barris, até se despedaçar de encontro às paliçadas que naquele sentido o represavam; volvia vertiginosamente ao sul; viam-na ondular, célere e agitante, por dentro do arraial, atravessando-o, e logo depois marulhar, recortada de tiros, na base dos primeiros esporões da Favela; saltava de novo para o leste, torcida, embaralhada, estrepitosa -e batia a esquerda do 5º da Bahia; era repelida: caía adiante sobre a barreira do 26º, era repelida; retraía-se daquele ponto para o centro da praça, inflectindo, serpeando, rápida, e quebrava-se, um minuto depois, sobre a linha negra; passava indistinta, mal vista ao clarão fugaz das fuzilarias, e corria mais uma vez para o norte, chofrando os mesmos pontos, repulsada sempre e atacando sempre, num remoinhar irreprimível e rítmico de ciclone... Parava. Súbita quietude substituía o torvelinho furioso. Absoluto silêncio descia sobre os dous campos. Os sitiantes deixavam a formatura do combate.

Mas repousavam alguns minutos breves.

Um estampido atroava na igreja nova, e viam-se sobre as cimalhas fendidas, engrimponados nas pedras vacilantes, vultos erradios, cruzando-se, mal firmes sobre escombros, correndo numa ronda douda. Tombavam-lhes logo em cima, revessadas de todos os trechos artilhados, lanternetas desabrolhando em balas. Não as suportavam. Desciam, em despenhos e resvalos de símios, daqueles muradais. Perdiam-se nos pardieiros próximos ao santuário. E ressurgiam, inopinadamente, junto de um ponto qualquer da linha. Batiam-no, eram repelidos; atacavam as outras trincheiras anexas, eram repelidos; caíam sobre as que se sucediam, e prosseguiam no giro, arrebatados na rotação enorme dos assaltos.

Os que na véspera desdenhavam o adversário entaipado naqueles casebres, assombravam-se. Como nos maus dias passados, mais intensamente ainda, julgulou-os o espanto.

Cessaram os desafios imprudentes. Determinou-se, de novo, que não soassem as cornetas. Só havia um toque possível -o de alarma- e este o inimigo eloqüentemente o dava.

Despovoaram-se os cerros. Terminou o fanfarrear dos que por ali se estadeavam, desafiando tiros. Valentes de fama, premunidos de cautelas, fraldejavam-nos às rebatinhas pelas passagens cobertas, curvando-se, e transpondo aos pinchos os pontos enfiados. Tornaram-se outra vez dificílima as comunicações. Os comboios, desde que apontavam ao sul, na crista dos morros, pela estrada do Calumbi, começavam a ser alvejados; desciam-nos precípites e alguns comboieiros vinham cair feridos no último passo, à entrada do acampamento.

A situação tornou-se, de repente, inaturável.

Não se compreendia que os jagunços tivessem ainda, após tantos meses de luta, tanta munição de guerra. E não a poupavam. Em certas ocasiões, no mais agudo dos tiroteios, pairava sobre os abarracamentos um longo uivar de ventania forte.

Projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zumbidos cheios e sonoros de Comblain, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões-revólveres, transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito das linhas; sobre as tendas próximas aos quartéis-generais; sobre todos os morros até ao colo abrigado da Favela, onde sesteavam cargueiros e feridos; sobre todas as trilhas; sobre o álveo longo e tortuoso do rio e sobre as depressões mais escondidas; resvalando com estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue despertando os enfermos retransidos de espanto; despedaçando vidros na farmácia militar, anexa; varando, sem que se explicasse tal abatimento de trajetória, as choupanas de folhagens, a um palmo das redes, de onde pulavam, surpreendidos, combatentes exaustos; percutindo, como pedradas rijas, as paredes espessas dos casebres da comissão de engenharia e quartel-general da 1ª coluna; zimbrando, em sibilos de vergastas, o pano das barracas; e fora das barracas, dos casebres, dos toldos, das tendas, estralando, ricochetando, ressaltando, desparzindo nos flancos das colinas, sobre as placas xistosas, quebrando-as e esfarelando-as em estilhas, numa profusão incomparável de metralha...

A luta atingia febrilmente o desenlace da batalha decisiva que a remataria. Mas aquele paroxismo estupendo acobardava os vitoriosos.

Os prisioneiros

Chegaram no dia 24 os primeiros prisioneiros.

Voltando triunfante, a tropa, que a princípio colhera em caminho meia dúzia de crianças, de quatro a oito anos, por ali dispersas e tolhidas de susto, ao esquadrinhar melhor os casebres conquistados encontrara algumas mulheres e alguns lutadores, feridos.

Estes últimos eram poucos e vinham em estado deplorável: trôpegos, arrastados, exaustos.

Um suspenso pelas axilas entre duas praças, meio desmaiado, tinha, diagonalmente, sobre o peito nu, a desenhar-se num recalque forte, a lâmina do sabre que o abatera. Outro, o velho curiboca desfalecido que não vingara disparar a carabina sobre os soldados, parecia um desenterrado claudicante. Ferido, havia meses, por estilhaços de granada, no ventre, ali tinha dous furos, de bordos vermelhos e cicatrizados, por onde extravasavam os intestinos. A voz morria-lhe na garganta, num regougo opresso. Não o interrogaram. Posto à sombra de uma barraca continuou na agonia, que o devorava, talvez havia três meses.

Algumas mulheres fizeram revelações: Vila-Nova seguira, na véspera, para a Várzea da Ema. Sentia-se já, há tempos, fome no arraial, sendo quase todos os mantimentos destinados aos que combatiam; e, revelação mais grave, o Conselheiro não aparecia desde muito.

Ainda mais, trancadas todas as saídas, começara para todos, lá dentro, o suplício crescente da sede.

Não iam além as informações. Os que as faziam inteiramente sucumbidos, mal respondiam às perguntas. Um único não refletia na postura abatida as provações que vitimavam os demais. Forte, de estatura meã e entroncada -espécime sem falhas desses hércules das feiras sertanejas, de ossatura de ferro articulando em juntas nodosas e apontando em apófises rígidas- era, tudo o revelava, um lutador de primeira linha, talvez um dos guerrilheiros acrobatas que se dependuravam ágeis nos dentilhões abalados da igreja nova. Primitivamente branco, requeimara-se-lhe inteiramente o rosto, mosqueado de sardas. Pendia-lhe à cintura, oscilante, batendo abaixo do joelho, a bainha vazia de uma faca de arrasto. Fora preso em plena refrega. Conseguira derribar, num arremessão valente, três ou quatro praças, e lograria escapar se não caísse, tonto, ferido de esconso por uma bala na órbita esquerda. Entrou, jugulado como uma fera, na tenda do comandante da 1ª coluna. Ali o largaram. O resfôlego precípite argüia o cansaço da luta. Alevantou a cabeça e o olhar singular que lhe saía dos olhos -um cheio de brilhos, outro cheio de sangue- assustava. Tartamudou, desajeitadamente, algumas frases mal percebidas. Tirou o largo chapéu de couro e, ingenuamente, fez menção de sentar-se.

Era a suprema petulância do bandido!

Brutalmente repelido, rolou aos tombos pela outra porta, escorjado sob punhos possantes.

Fora, passaram-lhe, sem que protestasse, uma corda de sedenho na garganta. E, levado aos repelões para o flanco direito do acampamento, o infeliz perdeu-se com os sinistros companheiros que o ladeavam no seio misterioso da caatinga.

A degola

Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.

Um golpe único, entretando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...

Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades.

Depoimento do autor

Desvendemo-las rudemente.

Deponhamos.

O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante.

Começara sob o esporear da irritação dos primeiros reveses, terminava friamente feito praxe costumeira, minúscula, equiparada às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de agüentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro comandante se dava o trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender.

Dispensava-a o soldado atreito à tarefa.

Esta era, como vimos, simples. Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiquerador; impedi-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém se surpreendesse; e sem temer que se escapasse a presa, porque ao mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até à primeira covanca profunda, o que era um requinte de formalismo: e, ali chegado esfaqueá-la. Nesse momento, conforme o humor dos carrascos, surgiam ligeiras variantes. Como se sabia, o supremo pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte senão pelas suas con- seqüências, porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a alma.

Exploravam esta superstição ingênua. Prometiam-lhes não raro a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros as faziam. Na maioria emudeciam, estóicos, inquebráveis -defrontando a perdição eterna. Exigiam-lhes vivas à República. Ou substituíam essa irrisão dolorosa pelo chasquear franco e insultuoso de alusões cruéis, num coro hilar de bruto de facécias pungentes. E degolavam-nos, ou cosiam-nos a pontaços. Pronto. Sobre a tragédia anônima, obscura, desenrolando-se no cenário pobre e tristonho das encostas eriçadas de cactos e pedras, cascalhavam rinchavelhadas lúgubres, e os matadores volviam para o acampamento. Nem lhes inquiriam pelos incidentes da empresa. O fato descambara lastimavelmente à vulgaridade completa. Os próprios jagunços, ao serem prisioneiros, conheciam a sorte que os aguardava. Sabia-se no arraial daquele processo sumaríssimo e isto, em grande parte, contribuiu para a resistência douda que patentearam. Render-se-iam, certo, atenuando os estragos e o aspecto odioso da campanha, a outros adversários. Diante dos que lá estavam, porém, lutariam até à morte.

E quando, afinal, jugulados, eram conduzidos à presença dos chefes militares, iam conformados ao destino deplorável. Revestiam-se de serenidade estranha e uniforme, inexplicável entre lutadores de tão variados matizes, e tão discordes caracteres, mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor.

Alguns se aprumavam, com altaneria incrível, no degrau inferior e último da nossa raça. Notemos alguns exemplos.

Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em fins de setembro, foi conduzido à presença do comandante da 1ª coluna, general João da Silva Barbosa. Chegou arfando, exausto da marcha aos encontrões e do recontro em que fora escolhido. Era espigado e seco. Delatava na organização desfibrada os rigores da fome e do combate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. A grenha, demasiadamente crescida, afogava-lhe a fronte estreita e fugitiva; e o rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda. Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça lanzuda, e cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos, entreabertos pelos dentes oblíquos e saltados, os olhos pequeninos, luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os longos braços desnudos, oscilando -davam-lhe a aparência rebarbativa de um orango valetudinário.

Não transpôs a couceira da tenda.

Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo.

O general-de-brigada João da Silva Barbosa, da rede em que convalescia de ferimento recente, fez um gesto. Um cabo-de-esquadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas façanhas, adivinhou-lhe o intento. Achegou-se com o baraço. Diminuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do condenado. Este, porém, auxiliou-o tranqüilamente; desdeu o nó embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se...

Perto, um tenente de estado-maior de primeira classe e um quintanista de medicina contemplavam aquela cena.

E viram transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram, repentinamente, linhas admiráveis -terrivelmente esculturais- de uma plástica estupenda.

Um primor de estatuária modelado em lama.

Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vergonhosa...

E estas cousas não impressionavam...

Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças. Fazia-se mister, porém, que se não revelassem perigosas. Foi o caso de uma mamaluca quarentona, que apareceu certa vez, presa, na barraca do comando-em-chefe. O general estava doente. Interrogou-a no seu leito de campanha -rodeado de grande número de oficiais. O inquérito resumia-se às perguntas de costume -acerca do número de combatentes, estado em que se achavam, recursos que possuíam, e outras, de ordinário respondidas por um «sei não!» decisivo ou um «E eu sei?» vacilante e ambíguo. A mulher, porém, desenvolta, enérgica e irritadiça, espraiou-se em considerações imprudentes. «Nada valiam tantas perguntas. Os que as faziam sabiam bem que estavam perdidos. Não eram sitiantes, eram presos. Não seriam capazes de voltar, como os das outras expedições; e em breve teriam desdita maior -ficariam, todos, cegos e tateando à toa por aquelas colinas...» E tinha a gesticulação incorreta, desabrida e livre.

Irritou. Era um virago perigoso. Não merecia o bem-querer dos triunfadores. Ao sair da barraca, um alferes e algumas praças seguraram-na.

Aquela mulher, aquele demônio de anáguas, aquela bruxa agourentando a vitória próxima -foi degolada...

Poupavam-se as tímidas, em geral consideradas trambolhos incômodos no acampamento, atravancando-o, como bruacas imprestáveis.

Era o caso de uma velha que se aboletara com dous netos de cerca de dez anos junto à vertente em que acampava o piquete de cavalaria. Os pequenos, tolhiços, num definhamento absoluto, não andavam mais; tinham volvido a engatinhar. Choravam desapoderadamente, de fome. E a avó, desatinada, esmolando pelas tendas os restos das marmitas, e correndo logo a acalentá-los, aconchegando-lhes dos corpos os frangalhos das camisas; e deixando-os outra vez, agitante, infatigável no desvelo, andando aqui, ali, à cata de uma blusa velha, de uma bolacha caída do bolso dos soldados, ou de um pouco d'água; acurvada pelo sofrimento e pela idade, titubeando de um para outro lado, indo e vindo, cambeteante e sacudida sempre por uma tosse renitente, de tísica, -constringia os corações mais duros. Tinha o quer que fosse de um castigo; passava e repassava como a sombra impertinente e recalcitrante de um remorso...

A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava, ainda, a poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dous pólos -o incêndio e a faca.

Justificavam-se: o coronel Carlos Teles poupara certa vez um sertanejo prisioneiro. A ferocidade dos sicários retraíra-se diante da alma generosa de um herói...

Mas este pagara o deslize imperdoável de ser bom. O jagunço, que salvara, conseguira fugir e dera-lhe o tiro que o removera do teatro da luta. Acreditava-se nestas cousas. Inventavam-nas. Eram antecipados recursos absolutórios. Exageravam-se, calculadamente, outras; os martírios dos amigos trucidados, caídos nas tocaias traiçoeiras, ludibriados depois de cadáveres e postos como espantalhos à orla dos caminhos... A selvageria impiedosa amparava-se à piedade pelos companheiros mortos. Vestia o luto chinês da púrpura e, lavada em lágrimas, lavava-se em sangue.

Um grito de protesto

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.

A História não iria até ali.

Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas, na imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na selvatiqueza épica das grandes invasões. Nada tinha que ver naquele matadouro.

O sertão é o homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.

E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a indiferença culposa. Desse modo a consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade tática dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os rancores acumulados, e arrojou, armada até aos dentes, em cima da mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.

Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava.

Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo.

Descidas as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, obscuramente, um drama sanguinolento da Idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e multiforme das raças -e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus.

A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos, ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro.

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa -esta página sem brilhos...

Titãs contra moribundos

O combate de 24 precipitara o desfecho. À compressão que se realizara ao norte, correspondeu, do mesmo modo vigoroso, outra, a 25, avançando do sul. O cerco constringia-se num apertão de tenaz. Entraram naquele dia em ação, descendo os pendores do alto do Mário, onde acampavam, num colo abrigado à retaguarda da Sete de Setembro, os dous batalhões do Pará e o 37º de linha. E fizeram-no de moto próprio, alheios a qualquer ordem do comando-geral.

Tinham motivos graves para aquele ato.

A derrocada de Canudos figurava-se-lhes iminente.

Da altura em que se abarracavam, no ângulo morto do boléu da vertente, examinavam-no a todo o instante; e viam arrochar-se embaixo a cintura do sítio; e ampliar-se, continuamente maior, a moldura lutuosa dos incêndios; e o povoado cada vez mais reduzido à grande praça deserta sempre, larga clareira onde por igual temiam penetrar os lutadores dos dous campos. Adiante, perto, estimulando-os, atroava o redente artilhado; embaixo, longe, crepitavam os tiroteios incessantes... e eles ali quedavam, inúteis, desdenhados pelas mesmas balas perdidas, que lhes zuniam por cima, muito altas, inofensivas.

De um momento para outro aquilo terminaria; e restar-lhes-ia a volta inglória -espadas virginalmente novas, bandeiras intactas, sem o rendado precioso das batalhas. Porque o general-em-chefe não encobria o propósito de não precipitar os acontecimentos num dispêndio inútil de vidas, quando a rendição em poucos dias era inevitável. Este intento, expresso sem rodeios, sobre ser mais prático, era mais humano. Mas implicava o renome guerreiro por se fazer dos que não tinham ainda combatido. Desairava-lhes a fama. Coagia-os ao constrangimento de receberem, grátis, as coroas antecipadamente bordadas nos estados nativos pelas mães, pelas esposas ou pelas noivas e pelas irmãs saudosas. E não puderam conter-se. Desceram ruidosamente as vertentes.

Travaram então um combate que foi uma surpresa, menos para os atacados que para o resto das linhas sitiantes. Desencadeara-se para os lados do Cambaio, secundado pela artilharia do coronel Olímpio da Silveira e, a breve trecho, cresceu com extraordinária intensidade.

Ao que se propalou depois, aqueles heróis impacientes, dirigidos pelos coronéis Sotero de Meneses e Firmino Rego, levavam o objetivo de tomar o arraial. Carregariam até ao rio. Transpô-lo-iam batendo-se sem parar, numa arrancada. Romperiam pela praça vazia. Enfiariam, a marche-marche, numa dispersão de cargas e baionetas, por aqueles becos fora. Varrê-los-iam. Pulariam os entulhos fumegantes, apisoando os matutos atônitos. E iriam tombar -numa explosão de aplausos- sobre a tranqueira do norte, entre as guarnições surpreendidas e pasmas...

Era um golpe de audácia estupendo. Mas não conheciam os sertanejos. Estes tomaram-lhes vigorosamente o passo. Jarretaram-nos. Anularam-lhes, no fim de algum tempo, intenso. E vingaram-se sem o saberem. Porque havia, de feito, algo de dolorosamente insolente e irritante no afogo, na inquietação, na ânsia desapoderada, com que aqueles bravos militares -robustos, bem fardados, bem nutridos, bem armados, bem dispostos- procuravam morcegar a organização desfibrada de adversários que desviviam há três meses, famintos, baleados, queimados, dessangrados gota a gota, e as forças perdidas, e os ânimos frouxos, e as esperanças mortas, sucumbindo dia a dia num esgotamento absoluto. Dariam a última punctura de baioneta no peito do agonizante; o tiro de misericórdia no ouvido do fuzilado. E cobrariam, certo, pouca fama, com a façanha.

Mas nem esta tiveram.

Apertara-se mais o cerco, é certo, mas sem que o resultado atingido ressarcisse os sacrifícios feitos: cerca de oitenta homens fora de combate e entre eles, ferido, o coronel Sotero, e morto o capitão Manuel Batista Cordeiro, do regimento do Pará.

Constringe-se o assédio

Em compensação, dizia-se, fora enorme a perda do inimigo -centenares de mortos, centenares de casas conquistadas. Com efeito, a parte do arraial em poder daqueles reduzia-se agora a menos de terço -à orla setentrional da praça e casebres junto à igreja.

Onze batalhões (16º, 22º, 24º, 27º, 32º, 33º, 37º, 38º, de linha, o do Amazonas, a ala direita do de São Paulo, e o 2º, do Pará), mais de dous mil e quinhentos homens, tinham-se apoderado, nos últimos dias, de cerca de duas mil casas e comprimiam os sertanejos, atirando-os de encontro à vertente da Fazenda Velha ao sul, e a leste contra igual número de baionetas dos 25º, 7º, 9º, 35º, 40º, 30º, 12º, 26º, de linha e 5º de Polícia.

Eram cinco mil soldados, em números redondos, excluídos os que permaneciam de guarda ao acampamento e guarnecendo a estrada de Monte Santo.

A população combatida tinha, ao invés das linhas frouxas de um assédio largo, um círculo inteiriço de 20 batalhões; e amoitava-se em menos de quinhentos casebres, ao fundo da igreja, na última volta do rio. Os incêndios reduziam-lhe, além disto, hora por hora, o campo. E embora as casas, com o seu madeiramento escasso, pouco alimentassem as chamas, estas progrediam devagar, no abafamento das fumaradas pardacentas, lembrando a combustão imperfeita de centenares de fornos catalães -nos densos rolos de fumo afuliginando o firmamento, espraiando-se pelos tetos, tornando ainda mais tristonho o cenário desolado e monótono. A artilharia dos morros pouco atirava, exigindo as pontarias grandes resguardos porque o mínimo desvio ou variação das alças arrojaria as balas sobre os assaltantes.

Apesar disto, continuava inteiramente vazia a praça. Ninguém se abalançara ainda a tomar as casas que a limitavam pelo norte, perpendicularmente à latada; e dentro destas e das que se seguiam compactas, junto à igreja, se acolheram os últimos jagunços. Os mais afoitos guarneciam ainda os muramentos desmantelados do templo. Comandavam-nos chefes sem grande nomeada. Esses heróis anônimos, porém, dispuseram a sua gente para a morte e, voando a todos os pontos, alentavam resistência incompreensível, tomando todas as medidas que delongassem indefinidamente o desfecho.

Assim os lutadores, a partir de 26, se revesavam das trincheiras, de onde respondiam aos ataques, para outros misteres porventura mais pesados e sérios.

Cavando o próprio túmulo

Preparavam, junto ao santuário, o último reduto -uma escavação retangular e larga. Abriam o próprio túmulo. Batidos de todos os lados, iriam recuando, palmo a palmo, braço a braço, todos, para aquela cova onde se sepultariam, indomáveis.

Escavavam, buscando a água que lhes faltava, cacimbas profundas. As mulheres, e as crianças, e os velhos, e os enfermos, colaboravam nestes trabalhos brutos. Mal reprofundavam, porém, além de dous metros os estratos duríssimos, filtrados pelos últimos estagnados do rio. Alcançavam-nos, às vezes; para vê-los, uma hora depois, extintos, sugados na avidez de esponja da atmosfera exsicada. E começou logo a torturá-los a sede, avivada pelas comoções e pela canícula queimosa. O combate fez-se-lhes, então, um divertimento lúgubre, um atenuante a maiores misérias. Atiravam desordenadamente, a esmo, sem o antigo rigor da pontaria, para toda a banda, num dispêndio de munições capaz de esgotar o arsenal mais rico. Os que se encurralavam na igreja nova continuavam varejando os altos, enquanto os demais tolhiam de frente, a dous passos, os batalhões entranhados no casario. Aí se realizavam episódios brutais. A apertura do campo e o estreito das bitesgas, impropriando o movimento às seções mais diminutas, davam à luta o traço exclusivo de uma bravura feroz. Alguns oficiais, ao avançarem, desapertavam os talins e jogavam a um lado a espada. Batiam-se a faca.

Mas a empresa tornara-se, ao cabo, dificílima. A constrição do sítio condensara nas casas os que se defendiam e estes, enchendo-as, opunham resistência crescente. Quando cediam num ou noutro ponto, os vencedores tinham, ainda, inopinadas surpresas. A traça dos sertanejos colhia-os mesmo naquele transe doloroso.

Trincheira de cadáveres

Foi o que sucedeu ao ser conquistado um casebre, depois de tenazmente defendido. Os soldados invadiram-no atumultuadamente. E depararam um monte de cadáveres; seis ou oito, caídos uns sobre outros, abarreirando a entrada. Não se impressionaram com o quadro. Enveredaram pelos cômodos escuros. Mas receberam em cheio, pelas costas, partindo daquela pilha de trapos sanguinolentos, um tiro. Voltando-se, pasmos, detonou-lhes outro, a queima-roupa, de frente. Sopitando o espanto, comprimidos na saleta estreita, viram então saltar e fugir o lutador fantástico, que adotara o estratagema profanador, batendo-se por trás de uma trincheira de mortos...

Em torno dos cacimbas

O lento avançar do assédio estacou, então, novamente. Imobilizava-o pela última vez o vencido. Ademais a situação não requeria maiores esforços. A vitória viria por si mesma. Bastava que se conservassem as posições. Fechadas todas as saídas e francamente batidas as cacimbas marginais do rio, o perdimento do arraial era inevitável, em dous dias no máximo -mesmo admitida a presunção de poderem, os assediados, por tanto tempo e naqueles dias ardentes, suportar a sede que os flagelava.

Mas a resistência duraria uma semana ainda. Porque aquele círculo maciço de batalhões começou a ser partido, intermitentemente, pelos sertanejos, à noite.

Na de 26 houvera quatro ataques violentos; na de 27, dezoito; nas dos dias subseqüentes, um único, porque já não intermitiram, prolongando-se, contínuos, das seis da tarde às cinco do amanhecer.

Não visavam rasgar um caminho à fuga. Empenhando-se todos ao sul atendiam à conquista momentânea das cacimbas, ou gânglios rebalsados do Vaza-Barris. Enquanto o grosso dos companheiros se batia atraindo para o âmago do arraial a maior parte dos sitiantes, alguns valentes sem armas, carregando as borrachas vazias, aventuravam-se até à borda do rio. Avançavam cautelosamente. Abeiravam-se das poças esparsas e raras, que salpintavam o leito; e, enchendo as vasilhas de couro, volviam, correndo, arcados sob as cargas preciosas.

Ora, esta empresa, a princípio apenas difícil, foi-se tornando, a pouco e pouco, insuperável.

Descoberto o motivo único daqueles ataques, os sitiantes das posições ribeirinhas convergiam os fogos sobre as cacimbas, facilmente percebidas -breves placas líquidas rebrilhando ao luar ou joeirando, na treva, o brilho das estrelas...

De sorte que atingindo-lhes as bordas os sertanejos tinham, em torno e na frente, o chão varrido à bala.

Avançavam e caíam, às vezes, sucessivamente, todos.

Alguns antes que chegassem a ipueiras esgotadas, reduzidas a repugnantes lameiros; outros quando, de bruços, sugavam o líquido salobro e impuro; e outros quando, no termo da tarefa, volviam arcando sob os bogós repletos. Substituíam-nos outros, rompendo desesperadamente contra os tiroteios, afrontando-se com a morte. Ou, o que em geral sucedia, deixavam que se atreguasse a repulsa enérgica e mortífera e se descuidassem os soldados vigilantes. Mas estes, conhecendo-lhes os ardis, sabiam que tornariam outra vez em breve. Aguardavam-nos, pontarias imóveis, ouvidos armados ao menor ruído, olhos frechando, fitos, as sombras, como caçadores numa espera. E divisavam-nos, de fato, transcorridos minutos, indistintos, vultos diluídos no escuro, na barranca fronteira; e viam-nos, descendo lento e lento por ela abaixo, de bruços, rentes com o chão, vagarosamente, num rastejar serpejante de grandes sáurios silenciosos; e viam-nos depois, embaixo, arrastando-se pelo esteiro areento do rio...

Seguravam as pontarias. Deixavam-nos aproximar-se, e deixavam-nos atingir os estagnados que eram o chamariz único daquela ceva monstruosa.

Então lampejava o fulgor das descargas subitâneas! Fulminavam-nos. Percebiam-se, adiante quinze metros, gritos dilacerantes de cólera e de dor; dous ou três corpos escabujando à beira das cacimbas; correndo outros, espavoridos; outros, feridos, em cambaleios; e outros desafiando o fuzilamento, pulando, sem resguardos agora, das barrancas -e velozes, terríveis, desafiadores- passando sobre os companheiros moribundos, arremetendo com a barreira infernal que os devorava.

Um único às vezes escapava, às carreiras. Transpunha a barranca de um salto, e perdia-se nos escombros do casario, levando aos companheiros alguns litros de água que custavam hecatombes. E era um líquido suspeito, contaminado de detritos orgânicos, de sabor detestável em que se pressentia o tóxico das ptomaínas e fosfatos dos cadáveres decompostos jazentes desde muito insepultos por toda aquela orla do Vaza-Barris.

Estes episódios culminaram o heroísmo dos matutos. Comoviam, por fim, aos próprios adversários.

Sobre as muradas da igreja nova

Não raro, quando toda a linha de sítio, ao norte, estrugia os ares em descargas compactas, sem que se distinguissem os tiros singulares, num ressoar intenso lembrando o de represas repentinamente abertas, e o bombardeio as completava, tombando dos morros -os combatentes da linha central do acampamento, arriscando-se aos projetis perdidos, borrifados pela refrega, faziam-se espectadores de uma cena extraordinária.

Em muitos despontou, ao cabo, irreprimível e sincero entusiasmo pelos valentes martirizados. Não o encobriam. O quadro que se lhes oferecia imortalizava os vencidos. Cada vez que os contemplavam tinham, crescente, o assombro:

A igreja sinistra bojava, em relevo, sobre o casario em ruínas; e impávidos ante as balas que sobre ela convergiam, viam-se, no resplendor fugaz das fuzilarias, deslizando-lhes pelas paredes e entulhos, subindo-lhes pelas torres derrocadas ou caindo por elas abaixo, de borco, presos aos blocos disjungidos, como titãs fulminados, vistos de relance num coriscar de raios, aqueles rudes patrícios indomáveis...

Passeio dentro de Canudos

Percebia-se-lhes, contudo, hora por hora, a exaustão.

Durante o dia o povoado, silencioso, marasmava na estagnação do bloqueio. Nem um ataque, às vezes. A 28 de setembro não replicaram às duas salvas e vinte e um tiros, de bala, com que foi criminosamente saudada, pela manhã e à tarde, a data belíssima que resume um dos episódios mais viris da nossa História. Era o fim.

Faziam-se já no acampamento preparativos para a volta; soavam livremente as cornetas; andava-se à vontade por toda a banda; entravam impunemente os comboios diários e correios, levando, os últimos, para os lares distantes as esperanças e as saudades dos triunfadores; grupos descuidados seguiam perlustrando pelas cercanias; improvisavam-se banquetes; e à tarde, formadas à frente dos quartéis de vários comandos, tocavam, nas retretas, as fanfarras dos corpos.

Percorria-se, ao cabo, quase todo o arraial.

A 29 o general-em-chefe e o comandante da 2ª coluna realizaram, com os estados-maiores respectivos, esse passeio atraentíssimo.

Seguiram, a princípio, pelo alto das colinas à direita do acampamento e, depois de uma inflexão à esquerda descendo por dentro da sanga flexuosa onde repontavam grandes placas de filades dando-lhes a feição de longa passagem coberta, avançavam até toparem as primeiras casas e, simultaneamente, esparsos, jazentes a esmo sobre montes de esteios, traves e ripas carbonizadas, os primeiros cadáveres insepultos do inimigo.

Tinha-se neste momento a impressão de uma entrada em velha necrópole que surgisse, desvendando-se de repente, à flor da terra. As ruínas agravavam a desordem das pequenas vivendas, construídas ao acaso, defrontando-se em bitesgas de um metro de largo, empachadas pelos tetos de argila abatidos. De sorte que a marcha se fazia adstrita a desvios tortuosos e longos. E a cada passo, passando junto aos casebres que ainda permaneciam de pé, oscilantes e arrombados, livres ainda das chamas, despontava ante o visitante atônito um traço pungente da vida angustiosa que se atravessara ali dentro.

Dizia-o, mais expressiva, a nudez dos cadáveres. Estavam em todas as posições; estendidos, de supino, face para os céus; desnudos os peitos, onde se viam os bentinhos prediletos; inflexos no último crispar da agonia; mal vistos, às vezes, caídos sob madeiramentos, ou de bruços sobre as trincheiras improvisadas, na atitude de combate em que os colhera a morte.

Em todos, nos corpos emagrecidos e nas vestes em pedaços, liam-se as provações sofridas. Alguns ardiam, lentamente, sem chamas, revelados por tênues fios de fumaça, que se alteavam em diversos pontos. Outros, incinerados, se desenhavam, salteadamente, nítidos, esbatida a brancura das cinzas no chão poento e pardo, à maneira de toscas e grandes caricaturas feitas a giz...

Seguia-se. A marcha gradativamente se tornava mais penosa, através de entulhos sucessivos de um esterquilínio pavoroso. A soldadesca varejando as casas pusera fora, às portas, entupindo os becos em monturos, toda a ciscalhagem de trastes em pedaços, de envolta com a farragem de molambos inclassificáveis: pequenos baús de cedro; bancos e jiraus grosseiros; redes em fiapos; berços de cipó e balaios de taquara; jacás sem fundo; roupas de algodão, de cor indefinível; vasilhames amassados, de ferro; caqueiradas de pratos, e xícaras, e garrafas; oratórios de todos os feitios; bruacas de couro cru; alpercatas imprestáveis; candeeiros amolgados, de azeite; canos estrondados, de trabucos; lascas de ferrões ou fueiros; caxerenguengues rombos...

E nestes acervos, nada, o mais simples objeto que não delatasse uma existência miseranda e primitiva. Pululavam rosários de toda a espécie, dos mais simples, de contas policrômicas de vidro, aos mais caprichosos, feitos de ouricuris; e, igualmente inúmeras, rocas e fusos, usança avoenga tenazmente conservada, como tantas outras, pelas mulheres sertanejas. Sobre tudo aquilo, incontáveis, esparsos pelo solo, apisoados, rasgados -registros, cartas santas, benditos em caderninhos costurados, doutrinas cristãs velhíssimas, imagens amarfanhadas de santos milagreiros, verônicas encardidas, crucifixos partidos; e figas e cruzes, e bentinhos imundos...

Em alguns lugares -um claro limpo, cuidadosamente varrido, um aceiro para que os incêndios não atingissem os entrincheiramentos. Varava-se mais facilmente por ali, penetrando fundo no casario e aproximando-se daqueles.

Topava-se, então, adiante, uma sentinela que recomendava em voz baixa prosseguir com cautela: o jagunço estava perto, menos de três metros, da outra banda da paliçada...

Os visitantes, -generais, coronéis, até ao último posto- na ansiedade de quem contorna uma emboscada, avançavam agachados, heroicamente cômicos, céleres, de cócaras, correndo. Transpunham a linha perigosa. Quebravam dous ou três becos. Chegavam à outra trincheira: soldados imóveis, expectantes, mudos, ou conversando em cochichos. Reproduzia-se a mesma travessia com o coração e as pernas aos saltos, a mesma corrida ansiosa, até outra trincheira adiante: idênticos lutadores, cautos, silenciosos, estendidas ou enfiadas as carabinas pelos parapeitos, que os resguardavam.

Transcorridos quinhentos metros, volvia-se à esquerda deixando à retaguarda as Casas Vermelhas e tinha-se uma surpresa -uma rua, uma verdadeira rua, a do Monte Alegre, a única que merecia tal nome, alinhada, larga de uns três metros e alongando-se de norte a sul até à praça, cortando todo o arraial. Nela se erigiram as melhores vivendas, algumas casas de telhas e soalho, e entre estas a de Antônio Vila-Nova, onde dias antes se tinham encontrado restos de munições da coluna Moreira César.

Descia-se por ela em suave declive, divisando-se no extremo, na praça, um lanço derruído da igreja. Mas a breve trecho estacava-se de encontro a outro entrincheiramento, onde se adensava maior número de combatentes. Era o último, naquele rumo. Dali por diante um passo mais era o espingardeamento certo. Toda a parte do arraial à direita e na frente estava ainda em poder dos habitantes. Os adversários acotovelaram-se. Ouvia-se, transudando das paredes da taipa, o surdo e indefinível arruído da população entocada: vozes precípites, cautas, segredando sob o abafamento dos colmos; arrastamentos de móveis; soar de passos; e uns como longínquos clamores e gemidos; e às vezes -notas cruelmente dramáticas!- gritos, e choros, e risos, de crianças...

Volvia-se dali para a esquerda, voltando ao ponto de partida, através das casas tomadas nas vésperas, e o passeio tornava-se amedrontador. Em todo este novo segmento da linha do sítio, definindo-lhe o avançamento máximo depois dos combates da última semana, não se tinham destruído os casebres. Derrubadas apenas as paredes interiores e as empenas, as coberturas de barro sucediam-se unidas ou pouco espaçadas, feito o teto de longuíssimo armazém abarracado. A barreira de esteios e vigas, canastras e trastes de toda a sorte, por detrás da qual se alinhavam os batalhões, progredia por ela dentro, torcida e longa, desaparecendo de todo numa distância de trinta metros, perdida na penumbra. Adivinhavam-se os soldados, a um lado, guarnecendo-a. Pelos recantos escuros, à retaguarda, lobrigavam-se os corpos dos jagunços mortos nos últimos dias, que fora perigoso queimar entre acervos de farrapos e estilhas de madeira, esparsos por toda a parte.

Impregnava o ambiente um bafio angulhento de caverna.

Era preciso valor para atravessar aquela espécie de túnel, em cuja boca, ao longe, mal se divisava um reflexo pálido do dia. Porque, a dous passos, ladeando-o, paralelamente, se estendia o entrincheiramento invisível do inimigo, interpostas as paredes fronteiras, enfrestadas. De sorte que o mínimo descuido, o mais rápido olhar por cima daqueles parapeitos de ciscalhos, era duramente pago. É que de parte a parte estavam as mesmas astúcias, avivadas dos mesmos ódios. Naquele sombrio finalizar da luta os antagonistas temiam-se por igual. Evitavam por igual o recontro franco. Negaceavam, estadeando as mesmas ardilezas e a mesma proditória quietude. Imóveis largo tempo, um em frente ao outro, abrigados na mesma sombra, parecendo refletir a adinamia do mesmo esgotamento -espiavam-se, solertes, traiçoeiros, tocaiando-se. E não podiam encontrar melhor cenário para ostentarem, ambos, soldados e jagunços, a forma mais repugnante do heroísmo do que aquele esterquilínio de cadáveres e trapos, imerso na obscuridade de uma furna.

Seguia-se por ali envolto de um silêncio lúgubre. Percebiam-se os soldados esfrangalhados, imundos, sem bonés, sem fardas, cobertos de chapéus de couro ou de palha, calçando alpercatas velhas, vestidos com o mesmo uniforme do adversário. E acreditava-se que, com alguma presença de espírito, o sertanejo pudesse insinuar-se pelos rombos do tapume extenso, e aparecer entre eles, e achegar-se com a espingarda ao parapeito, e ali se quedar forrando-se às torturas do cerco, sem que o conhecessem -o que, ademais, era facilitado pela mistura dos diversos batalhões. Nem o atraiçoaria palmar ignorância dos deveres ou exigências da vida militar, porque esta se extinguira por completo. Não havia revistas, formaturas, nem toques, nem vozes de comando. Distribuídos os cartuchos, cada um se encostava ao espaldão de cacaréus pronto ao que desse e viesse.

Distribuídas as rações diárias, fartas agora, cada um as preparava quando se lhe antojava ensejo. Aqui, ali, à retaguarda da linha ou dentro dos cubículos estreitos, sobre trempes de adobes ou pedras, chiavam as chaleiras aquentando água para o café; ferviam panelas; destacavam-se grandes quartos de boi, pendurados aos caibros, avermelhando no escuro, sobre braseiros, assando. Em torno, acocorados, carabinas sobraçadas, viam-se, em grupos, os combatentes que aproveitavam ligeira trégua para almoçar ou jantar. Dali corriam, não raro, em tumulto, jogando fora os canecos de jacuba ou nacos de churrasco, precipitando-se para a estacada quando, de súbito, estalava um tiro adiante e zuniam logo as balas esfuziantes, varando os tetos, estilhaçando ripas e traves, esbotenando paredes, emborcando caldeirões -espalhando soldados como um pé-de-vento sobre palhas. No parapeito, adiante, replicavam de pronto os que já lá estavam, atirando a esmo contra o tabique que defrontavam e donde partira a agressão. Imitavam-nos os companheiros laterais. Logo depois vibrava um abalo nervoso único, estendendo-se daquele ponto aos dous extremos, com uma trepidação vibrátil de descarga; e travava-se o combate, de improviso, furiosamente, desordenadamente, entre adversários que se não viam...

Baqueavam algumas praças, mortas ou feridas. Conquistavam-se dous ou três casebres mais -empurrando-se logo por diante toda a cangalhada de móveis, encurvando-se a tranqueira num ângulo saliente em talhante avançado. Volviam, prestes, os lutadores que mais se tinham avantajado, às posições primitivas. E o silêncio descia de novo, reinando outra vez o mesmo silêncio formidável: soldados mudos e imóveis, acaroados com a borda da tapada sinistra, expectantes, na tocaia; ou, ao fundo, em roda dos brasidos, reatando as merendas ligeiras, que tinham, às vezes, uns trágicos convivas -os moradores assassinados, estirados pelos recantos...

Deixava-se, por fim, este segmento sinistro do bloqueio, que trancava quase todo o quadrante do norte. Prosseguia-se, a céu aberto agora, em pleno dia, atravessando quintalejos pobres de cercas caídas e canteiros rasos, sem mais uma flor, e atravancados da mesma ciscalhagem indefinível, em montes. Sobre estes, corpos de sacrificados ainda: pernas surdindo inteiriçadas; braços repontando desnudos, num retesamento de angústia; mãos espalmadas e rígidas, mãos contorcidas em crispaduras de garras, apodrecendo, sinistras, em gestos tremendos de ameaça ou apelos excruciantes...

Deparavam-se novos viventes: gozos magríssimos, famélicos lebréus, pelados, esvurmando lepra, farejando e respigando aqueles monturos, numa ânsia de chacais, devorando talvez os próprios donos. Fugiam rápidos. Alguns cães de fila, porém, grandes molossos ossudos e ferozes, afastavam-se devagar, em rosnaduras ameaçadoras, adivinhando no visitante o inimigo, o intruso irritante e mau.

Ia-se descendo sempre, até à sanga escavada, embaixo, correndo, em direção perpendicular à que se levava, para o Vaza-Barris, ao longe, para onde canalizava, nas quadras chuvosas, as águas das vertentes interopostas. Ali terminava, batendo contra o topo da colina, onde estava a comissão de engenharia, a parte do arraial expugnada a 18 de julho. Podia atingir-se diretamente o acampamento seguindo em frente, transpondo o valo, subindo e atravessando, a meia encosta, a bateria de Krupps emparcada ao fundo do quartel-general da 1ª coluna; ou, num desvio longo, volvendo à direita, acompanhando o valo, perlongando a linha primitiva do assédio, descendo para o sul. A travessia era sem riscos. As casas -num desordenado arruamento às bordas daquele sulco de erosão, acompanhando-lhe o declive, caindo-lhe pelos ressaltos, envesgando-lhe pelas curvas vivas- tinham, na maioria, sido desmanchadas, salvante poucas, as melhores, onde se improvisavam salas de ordem das brigadas, quartéis e ranchos da oficialidade. Uma delas era digna de nota. Fora uma tenda de ferreiro. Mostravam-no ainda alguns gastos marrões, tenazes partidas e derruída forja fixa, de adobes. E aquela ferraria pobre do sertão tinha uma bigorna luxuosa, do mais fino aço, que se fundira em Essen: um dos canhões tomados à expedição Moreira César.

Continuando a marcha topava-se a «linha negra», nome que primitivos sucessos justificavam, mas agora inexplicável para quem vinha das sombrias trincheiras deixadas ao norte.

Seguia-se acompanhando-a pelo fundo de um fosso, até se abrir a meio caminho, à direita, um claro amplo -a praça das igrejas, deserta, achanada, varrida, fazendo avultar maior, mais dominador, mais brutal, mais sinistro, com os seus paredões incumbentes, fendidos de alto a baixo, com a sua fachada estupenda esboroando em monólitos, com as suas torres ruídas, e o adro entupido de blocos encaliçados, e a neve, lá dentro, vazia, escura, misteriosa -o templo monstruoso dos jagunços.

Dados mais alguns passos fronteava-se a igreja velha, inteiramente queimada, reduzida às quatro paredes exteriores.

Tinha-se nesse momento, à esquerda, o mais miserando dos campos santos, centenares de cruzes -dous paus roliços amarrados com cipós- fincados sobre sepulturas rasas.

Transpunha-se depois o Vaza-Barris; enfiava-se pelo sulco profundo do Rio da Providência, percorrendo, em torcicolos, as fileiras dizimadas do 5º de Polícia, reduzido ao terço do primitivo quadro -e chegava-se, no tombador da Favela, a uma clareira em declive. No alto o baluarte Sete de Setembro sobressaía em balcão, dominante. Percorria-se rapidamente aquele intervalo perigoso, alcançando-o.

Contemplava-se o arraial embaixo. Modificara-se-lhe, afinal, o aspecto -sombreado de largas manchas escurentas, de incêndios; erriçado de madeiramentos varando pelos rombos dos tetos; tumultuando em montões de argila- num esmagamento completo, arruinado, queimado, devastado...

Apenas estreita fímbria da face norte da praça e o núcleo de casebres junto à latada e à retaguarda da igreja se figuravam intactos. Mas eram em número diminuto, quatrocentos talvez, comprimidos em área reduzida. E os que neles se abrigavam certo não suportariam por uma hora um assalto de seis mil homens.

Valia a pena tentá-lo.

O assalto

Foi o que fez o comando-em-chefe, contravindo ao propósito de aguardar a rendição sem dispêndio inútil de vidas, pelo enfraquecimento contínuo dos rebeldes.

Reunidos a 30 de setembro os principais chefes militares, concertaram nos dispositivos do recontro para o dia imediato. E, de acordo com os lineamentos do plano adotado, naquele mesmo dia à noite mobilizaram-se as unidades do combate, ocupando, assim, de véspera, as posições para a investida.

O assalto seria iniciado por duas brigadas, a 3ª e 6ª, dos coronéis Dantas Barreto e João César Sampaio, a primeira endurada por três meses de contínuos recontros e a última, recém-vinda, de combatentes que ansiavam a medir-se com os jagunços. Aquela deixou, então, a sua antiga posição na linha negra, sendo substituída por três batalhões, 9º, 22º e 34º, e contramarchando para a direita, seguiu rumo à Fazenda Velha, de onde juntamente com a outra, formada dos 29º, 39º e 4º Batalhões, se moveu até estacionar à retaguarda e flancos da igreja nova, objetivo central do acometimento.

Completariam este movimento primordial, outros, secundários e supletivos: no momento da carga, o 26º de linha, o 5º da Bahia e ala direita do batalhão de S. Paulo tomariam rapidamente posições junto à barranca esquerda do Vaza-Barris, à ourela da praça, onde se conservariam até nova ordem. À sua retaguarda se estenderiam em apoio os dous corpos do Pará, prontos a substituírem-nos ou a reforçarem-nos, segundo as eventualidades do combate. De sorte que este, iniciado à retaguarda e aos flancos da igreja, iria, a pouco e pouco, deslocando-se para a linha de baionetas que se cosia à barranca lateral do rio, na face sul da praça.

Era, como se vê, um arrochar vigoroso -em que colaborariam os demais corpos guarnecendo as posições recém-conquistadas e o acampamento. Interviriam na ação à medida das circunstâncias, ou quando tombassem diante das trincheiras e das barrancas as chusmas de inimigos repulsados.

Sobre tudo isto -preliminar preparatória e indispensável- um bombardeio firme, em que entrariam todos os canhões do sítio, batendo por espaço de uma hora a estreita área a expugnar-se. Somente depois que eles emudecessem, arremeteriam as brigadas assaltantes, de baionetas caladas, sem fazerem fogo, salvo se o exigissem as circunstâncias. Em tal caso, porém, devia ser feito na direção única da meridiana, a fim de não serem atingidos os batalhões jazentes nas posições próximas ao conflito. A 3ª Brigada ao toque geral, partido do comando-em-chefe, de «infantaria avançar!», seguiria a marche-marche, procurando o flanco esquerdo da igreja, junto ao qual se estenderia distante cento e cinqüenta metros; enquanto dous batalhões da 6ª, o 29º e o 39º investissem para a retaguarda daquela, e o 4º, transpondo também o Vaza-Barris, a acometesse pelo flanco direito. Os demais combatentes seriam, a não ser que o imprevisto determinasse ulteriores combinações, simples espectadores da ação.

O canhoneio

E no amanhecer de 1º de outubro começou o canhoneio.

Convergia sobre o núcleo reduzido dos últimos casebres, partindo de longo semicírculo de dous quilômetros, das bateriaspróximas ao acampamento até ao redente extremo, da outra banda, onde findava a estrada do Cambaio. Durou quarenta e oito minutos apenas, mas foi esmagador. As pontarias estavam feitas de véspera. Não havia errar o alvo imóvel.

Dava-se, além disto, a última lição à rebeldia impenitente. Era preciso que, francamente desbravado o chão para o assalto, não sobreviessem mais surpresas dolorosas e ele se executasse, de pronto, fulminante e implacável, com os entraves únicos de um passo de carga sobre ruínas. Fizeram-se as ruínas.

Via-se a transmutação do trecho torturado: tetos em desabamentos, prensando, certo, os que se lhes acolhiam por baixo; nos cômodos estreitos; tabiques esboroando, voando em estilhas e terrões; e aqui, e ali, em começo dispersos e logo depois ligando-se rapidamente, sarjando de flamas a poeira dos escombros, novos incêndios, de súbito deflagrando.

Por cima -toldada a manhã luminosa dos sertões- uma rede vibrante de parábolas...

Não havia perder-se uma granada única. Batiam nas cimalhas rotas das igrejas, explodindo em estilhas, ou saltando em ricochetes largos, para diante, sobre o santuário e a latada; arrebentavam nos ares; arrebentavam sobre a praça; arrebentavam sobre os colmos, esfarelando as coberturas de barro; entravam, arrebentando, pelos colmos dentro; basculhavam os becos enredados, revolvendo-lhes os ciscalhos; e revolviam, de ponta a ponta, inflexivelmente, batendo-o casa por casa, o último segmento de Canudos. Não havia anteparos ou pontos desenfiados que o resguardassem. O abrigo de um ângulo morto formado pelos muros da igreja nova, antepostos aos disparos da Sete de Setembro, era inteiramente destruído pelas trajetórias das baterias de leste e oeste. Os últimos jagunços tinham, intacta, fulminando-os, sem perda de uma esquírola de ferro, toda a virulência daquele bombardeio impiedoso.

Entretanto, não se notou um grito irreprimível de dor, um vulto qualquer, fugindo, ou a agitação mais breve. E quando se deu o último disparo, e cessou o fragor dos estampidos, a inexplicável quietude do casario fulminado fazia supor o arraial deserto, como se durante a noite a população houvesse, miraculosamente, fugido.

Houve um breve silêncio. Vibrou um clarim no alto da Fazenda Velha. Principiou o assalto.

Consoante as disposições anteriores, os batalhões abalaram, convergentes de três pontos, sobre a igreja nova. Seguiram, invisíveis, entre os casebres ou pelo talvegue do Vaza-Barris. Um único, pela direção que trilhava, se destacou à contemplação do resto dos combatentes, o 4º de Infantaria. Viram-no atravessar a marche-marche de armas suspensas, o rio; transpô-lo; galgar a barranca; aparecer, alinhado e firme, à entrada da praça.

Era a primeira vez que ali chegavam lutadores numa atitude corretamente militar.

República dos jagunços

Feito este movimento, aquele corpo marchou heroicamente, avançando. Mas desarticulou-se, dados alguns passos, num desequilíbrio instantâneo. Baquearam alguns soldados, de bruços, como se se preparassem para atirar melhor por trás dos blocos da fachada destruída; viram-se outros, recuando, fora da forma; distanciarem-se, arremetendo para a frente, outros; depois um enredado de baionetas entrebatendo-se, em grupos dispersos -erradios. E logo após, pelos ares ainda silenciosos, um estouro, lembrando arrebentamento de minas...

O jagunço despertava, como sempre, de improviso, surpreendentemente, teatralmente e gloriosamente, renteando o passo aos agressores.

Estacou o 4º, batido de chapa pelos adversários emboscados à ourela da praça; estacaram o 39º e o 29º, ante descargas a queima-roupa, através das paredes ao fundo do santuário; e, pela sua esquerda, imobilizou-se a carga da Brigada Dantas Barreto. Fortemente atacada por um dos flancos esta teve que avançar naquele sentido, abandonando a direção inicial da investida, o que foi imperfeitamente conseguido por três companhias dispersas, destacadas do grosso dos batalhões.

Modificavam-se todos os movimentos táticos preestabelecidos. Ao invés da convergência sobre a igreja, as brigadas paravam ou fracionavam-se embitesgando nas vielas.

Durante cerca de uma hora os combatentes que contemplavam a refrega, no alto das colinas circunjacentes, nada mais distinguiram, fora da assonância crescente dos estampidos e brados longínquos -arruído confuso de onde expluíam, constantes, sucessivos, quase angustiosos, abafados clangores de cornetas. Desapareceram as duas brigadas, embebidas de todo na casaria indistinta. Mas contra o que era de esperar, os sertanejos permaneceram invisíveis e nem um só apareceu, correndo para a praça. Batidos, entretanto, por três lados, deviam, recuando por ali e precipitando-se na fuga, ir de encontro às baionetas das forças estacionadas nas linhas centrais e nas beiradas do rio. Era este, como vimos, o objetivo primordial do assalto. Falhou completamente. E o malogro valia por um revés. Porque os assaltantes, deparando resistências com que não contavam, paravam; entrincheiravam-se; e assumiam atitude de todo contraposta à missão que levavam. Quedaram na defensiva franca. Caíam-lhes em cima, desbordando dos casebres fumegantes e assaltando-os, os jagunços.

Apenas a igreja nova fora tomada e, dentro da sua nave revolvida, os soldados do 4º, trepados em montões de blocos e caliça, embaralhavam-se, em tumulto, com os das companhias pertencentes à 3ª Brigada. Este sucesso, porém, verificara-se inútil. A um lado, estrepitava, feroz, contínua, ensurdecedora, a trabucada dos guerrilheiros, que enchiam o santuário.

E a praça, onde devia aparecer o inimigo repelido, ferretoado a baioneta, permanecia deserta.

Era urgente ampliar o plano primitivo do ataque, lançando no conflito novos lutadores. Do alto da Sete de Setembro partiu o sinal do comando-em-chefe, e logo depois o toque de avançar para o 5º da Bahia. Lançava-se o jagunço contra o jagunço.

O batalhão de sertanejos avançou. Não foi a investida militar, cadente, derivando a marche-marche, num ritmo seguro. Viu-se um como serpear rapidíssimo de baionetas ondulantes, desdobradas, de chofre, numa deflagração luminosa, traçando em segundos uma listra de lampejos desde o leito do rio até aos muros da igreja...

O mesmo avançar dos jagunços, célebre, estonteador, escapante à trajetória retilínea, num colear indescritível. Não foi uma carga, foi um bote. Em momentos uma linha flexível, de aço, enleou o baluarte sagrado do inimigo. Coruscou um relâmpago de duzentas baionetas: o 5º desapareceu mergulhando nos escombros...

Mas a situação não mudou. Aquele fragmento revolto do arraial, para cuja expugnação pareciam excessivas duas brigadas, absorvera-as; absorvera o reforço enviado; ia absorver batalhões inteiros. Seguiram logo depois o 34º o 40º, o 30º e o 31º de Infantaria. Duplicavam as forças assaltantes. Aumentou, num crescendo, o estrépido da batalha invisível; ampliaram-se os incêndios; ardeu todo a latada. Mas na espessa afumadura dos ares embruscados, branqueava, embaixo, a praça absolutamente vazia.

Baixas

Ao fim de três horas de combate, tinham-se mobilizado dous mil homens sem efeito algum. As nossas baixas avultavam. Além de grande número de praças e oficiais de menor patente, baquearam mortos, logo pela manhã, o comandante do 29º, major Queirós, e o da 5ª Brigada, tenente-coronel Tupi Ferreira Caldas.

Tupi Caldas

A deste originara raro lance de bravura. Os soldados do 30º idolatravam-no. Era uma rara vocação militar. Irrequieto, nervoso e impulsivo, o seu temperamento casava-se bem à vertigem das cargas e à rudeza das casernas. Nesta campanha mesmo jogara várias vezes a vida. Fora o comandante da vanguarda a 18 de julho; e depois daquele dia saíra indene dos mais mortíferos tiroteios. As balas tinham-no até então poupado, arranhando-o, rendando-lhe o chapéu, amolgando-lhe a chapa do talim. A última fulminou-o. Entrou por um dos braços, soerguido para sustentar o binóculo com que contemplava o assalto, e traspassou-lhe o peito. Atirou-o em terra, instantaneamente, morto. O 30º procurou vingá-lo. Correu-lhe pelas fileiras um frêmito de vapor e de cólera, e depois trasmontou de um pulo a tranqueira em que se abrigava, Embateu contra os casebres entrincheirados, de onde partira o projetil e arrojou-se a marche-marche, envesgando por uma viela em torcicolos. Não se ouviu um tiro. Soldados alvejados a queima-roupa caíam por terra rugindo enquanto os companheiros lhes passavam por cima esbarrando contra as portas, arrombando-as a coronhadas, penetrando os cômodos escuros, travando-se, lá dentro, em pugilatos corpo a corpo.

Esta arremetida, porém, das mais temerárias que se fizessem em todo o decorrer da luta, como as demais, reduziu-se ao primeiro ímpeto. Sopeou-a a tenacidade incoercível dos jagunços. O 30º, consideravelmente desfalcado, refluiu em desordem à posição primitiva.

Por toda a banda realizavam-se idênticos arremessos e idênticos recuos. O último estortegar dos vencidos quebrava a musculatura de ferro das brigadas.

Entretanto, pouco antes de nove horas, alentou-as a ilusão arrebatadora da vitória. Ao avançar um dos batalhões de reforço, um cadete do 7º cravara nas junturas das paredes estaladas da igreja a bandeira nacional. Ressoaram dezenas de cometas e um viva à República saltou, retumbando, de milhares de peitos. Surpreendidos com o inopinado da manifestação, os sertanejos amorteceram e cessaram o tiroteio. E a praça, pela primeira vez, desbordou de combatentes. Muitos espectadores desceram, rápidos, as encostas. Desceram os três generais. Ao passarem pela baixada da linha negra, viram às encontroadas entre quatro praças, dous jagunços presos. Adiante e aos lados -agitando os chapéus, agitando as espadas e as espingardas, cruzando-se, correndo, esbarrando-se, abraçando-se, torvelinhando pelo largo- combatentes de todos os postos em delírios de brados e ovações estrepitosas.

Terminara afinal a luta crudelíssima...

Mas os generais seguiam com dificuldades, rompendo pela massa tumultuária e ruidosa, na direção da latada, quando, ao atingirem grande depósito de cal que a defrontava, perceberam surpreendidos, sobre as cabeças, zimbrando rijamente os ares, as balas...

O combate continuava. Esvaziou-se, de repente, a praça.

Foi uma vassourada.

A dinamite

E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos, -os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela História, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam seis mil Mannlichers e seis mil sabres; e o golpear de doze mil braços, e o acalcanhar de doze mil coturnos; e seis mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de shrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços -sob a impassibilidade dos céus tranqüilos e claros- a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte...

Impunham-se outras medidas. Ao adversário irresignável as forças máximas da natureza, engenhadas à destruição e aos estragos. Tinham-nas, previdentes. Havia-se prefigurado aquele epílogo assombroso do drama. Um tenente, ajudante-de-ordens do comandante-geral, fez conduzir do acampamento dezenas de bombas de dinamite. Era justo; era absolutamente imprescindível. Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra; enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota.

Ademais entalhava-se o cerne de uma nacionalidade.

Atacava-se a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite... Era uma consagração.

Cessaram as fuzilarias; e desceu sobre todas as linhas um grande silêncio de expectativa ansiosa... Logo depois correu um frêmito pela cercadura do sítio; espraiou-se pela periferia dilatada; passou, vibrátil, pelo acampamento; passou, num súbito estremeção, pelas baterias dos morros; e avassalou a redondeza, num trêmulo vibrante de curvas sismais cruzando-se pelo solo. Tombaram os dentilhões despegados das igrejas; desaprumaram-se paredes, caindo; voaram tetos e tetos; tufou um cumulus de poeira espessando a afumadura dos ares; e, dentre centenares de exclamações irreprimidas, de espanto, retumbou a atroada de explosões fortíssimas. Parecia tudo acabado. O último trecho de Canudos arrebentava todo.

Os batalhões, embolados pelos becos, fora da zona mortífera das traves e cumeeiras que zuniam, em estilhas, sulcando para toda a banda o espaço, aguardavam que se diluísse aquele bulcão de chamas e pó, para o derradeiro acometimento.

Mas não o executaram. Houve, ao contrário, um recuo repentino. Batidos de descargas que não se compreendia como eram feitas daqueles braseiros e entulhos, os assaltantes acobertaram-se em todas as esquinas, esgueiraram-se pelas abas dos casebres e pularam, na maioria, para trás dos entrincheiramentos.

Adiante atordoava-os assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e imprecações, refletindo do mesmo passo o espanto, a dor, o exaspero e a cólera da multidão torturada que rugia e chorava. Via-se indistinto entre lumaréus um convulsivo pervagar de sombras: mulheres fugindo dos habitáculos em fogo, carregando ou arrastando crianças e entranhando-se, às carreiras, no mais fundo do casario; vultos desorientados, fugindo ao acaso para toda a banda; vultos escabujando por terra, vestes presas das chamas, ardendo; corpos esturrados, estorcidos, sob tições fumarentos... E, dominantes, sobre este cenário estupendo, esparsos, sem cuidarem de ocultar-se, saltando sobre os braseiros e aprumando-se sobre os colmos ainda erguidos, os últimos defensores do arraial. Ouviam-se as suas apóstrofes rudes; distinguiam-se vagamente os seus perfis revoluteando por dentro da fumarada; e por toda a parte, salteadamente, a dous passos das linhas de fogo, aparecendo, improvisas, fisionomias sinistras, laivadas de mascarras, bustos desnudos chamuscados, escoriados, embatendo-as, em assaltos temerários e doudos...

Continua a réplica

Vinham matar os adversários sobre as próprias trincheiras. Estes esmoreciam. Verificaram a inanidade do bombardeio, das cargas repetidas e do recurso extremo da dinamite. Desanimavam. Perderam a unidade da ação e do comando. Os toques das cornetas contrabatiam-se, discordes, interferentes nos ares, sem que ninguém os entendesse. Não havia obedecê-los, variando as condições táticas a cada minuto e a cada passo. As seções de uma mesma companhia avançavam, recuavam ou imobilizavam-se; subdividiam-se em todas as esquinas; misturavam-se com as de outros corpos; embatiam com as casas ou contornavam-nas, ou dispersavam-se aliando-se a outros grupos e reeditando, dados alguns passos, as mesmas avançadas e os mesmos recuos, e a mesma dispersão. De sorte que por fim se agitavam em bandos desorientados, em que se amalgamavam praças de todos os batalhões.

Baixas

Aproveitando este tumulto, os jagunços fuzilavam-nos a salvo e sem piedade. A breve trecho os combatentes, que não tinham o anteparo dos espaldões, acumularam-se às abas das vivendas ainda intactas, ou alongaram-se, distanciados, pelos becos da parte conquistada -evitando a zona perigosa. Esta, porém, alastrava-se. Baqueavam combatentes para além das trincheiras; caíam inteiramente fora da órbita flamejante do combate e, como nos maus dias da primeira semana do assédio, a mínima imprevidência e o mais rápido afastamento daqueles abrigos frágeis eram uma temeridade.

O capitão-secretário de comando da 2ª coluna, Aguiar e Silva, quando lhe passava por perto um pelotão em marcha, retirou-se por um instante do cunhal que o acobertava e, para animar o ataque, tirou entusiasticamente o chapéu, levantando um viva à República. Mas não pronunciou as últimas sílabas. Varou-o uma bala, em pleno peito, derribando-o.

O comandante do 25ª, major Henrique Severiano, teve idêntico destino. Era uma alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços: aconchegou-a do peito -criando com um belo gesto carinhoso o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz- e salvou-a.

Mas expusera-se. Baqueou, malferido, falecendo poucas horas depois.

E assim por diante. O combate transformara-se em tortura inaturável para os dous antagonistas.

No hospital de sangue

As nossas baixas avultavam. Os espectadores, atestando os mirantes acasamatados da colina extrema do acampamento, avaliavam-nas pela lúgubre procissão de andores, padiolas e redes que lhes passava de permeio, subindo. Saía da sanga, embaixo; derivava vagarosa na ascensão contorneando em desvios as casas por ali espalhadas; galgava o alto e prosseguia, descendo para o hospital de sangue, onde, à 1 hora da tarde, já haviam chegado cerca de trezentos feridos.

Mas aquela alpendrada de couro, cobrindo a reentrância que se abrigava entre colinas, não os continha. Os feridos entulhavam-na; desbordavam para as abas das encostas envolventes, ao sol, sobre as pedras; e arrastavam-se, disputando a sombra das barracas, até à farmácia anexa e pavilhão dos médicos, por onde se cruzavam, correndo, enfermeiros e médicos diminutos demais para os satisfazer a todos. Ao fundo do barracão, arrimados aos cotovelos, de bruços, os antigos doentes, e feridos dos dias anteriores, olhavam inquietos para os novos sócios de infortúnio. A um lado, sobre o chão duro, corpos rígidos francamente batidos pelo sol, jaziam os cadáveres de alguns oficiais, o tenente-coronel Tupi, o major Queiróz, os alferes Raposo, Neville, Carvalho e outros.

Soldados ofegantes e suarentos entravam e saíam intermitentemente, arcados sob padiolas. Despejavam-nas, volvendo, prestes, naquela azáfama fúnebre que ameaçava prolongar-se pelo dia todo. Porque até aquela hora a situação não melhorara. Persistia indecisa. Mantinha-se a réplica feroz dos adversários. Insistentes, imprimindo no tumulto a nota de uma monotonia cruel, reproduziam-se em todas as linhas os toques das cornetas, determinando as cargas; e estas realizavam-se, sucessivas, rápidas, impetuosas -pelotões, batalhões, brigadas, vagas de metal e flamas, fulgurando, rolando, arrebentando e detonando de encontro a represas intransponíveis.

As bombas de dinamite (foram arrojadas noventa nesse dia) estouravam de momento em momento, mas com absoluto insucesso. Adicionaram-se-lhes outros expedientes: latas de querosene derramadas por toda a orla da casaria, avivando os incêndios.

Este recurso bárbaro, porém, por sua vez, resultara inútil.

Por fim, às duas horas da tarde, se paralisou inteiramente o assalto; cessaram de todo as cargas; e no ânimo dos sitiantes, em franca defensiva nas posições primitivas, doíam desapontamentos de derrota. Defluindo da baixada, a leste da praça, continuou largo tempo a romaria penosa dos feridos, em busca do hospital de sangue. Em padiolas, em redes, ou suspensos pelos braços entre os companheiros, ascendiam exaustos, titubeantes, arrimando-se e cosendo-se às casas. E sobre eles, sobre as colinas, varrendo-as sobre os morros artilhados, varejando-os, sobre o acampamento todo, ao cair da tarde, ao anoitecer e durante a noite inteira, visando todos os pontos da periferia do assédio, sibilando em todos os tons pelos ares, da zona reduzidíssima onde se acantonavam os jagunços irrompiam as balas...

O combate fora cruento e estéril. Desfalcara-nos de quinhentos e sessenta e sete lutadores, sem resultado apreciável.

Como sempre a vibração forte da batalha amortecera a pouco e pouco, atenuando-se em tiroteios escassos; e toda a noite passou, velando-a, a tropa combalida na expectativa cruel de novos recontros, novos sacrifícios inúteis e novos esforços malogrados.

Entretanto a situação dos sertanejos piorara. Tinham, com a perda da igreja nova, perdido as últimas cacimbas. Cercavam-nos braseiros enormes, progredindo-lhes em roda e avançando de três pontos -do norte, leste e oeste- obstringindo-os no último reduto.

Mas à madrugada de 2 os triunfadores fatigados despertaram com uma descarga desafiadora e firme.

Notas de um diário

Nesse dia...

Translademos, sem lhes alterar uma linha, as últimas notas de um «Diário», escritas à medida que se desenrolavam os acontecimentos.

«... Chegaram à 1 hora em grande número novos prisioneiros -sintoma claro de enfraquecimentos entre os rebeldes. Eram esperados. Agitara-se pouco depois do meio-dia uma bandeira branca no centro dos últimos casebres e os ataques cessaram imediatamente do nosso lado. Rendiam-se, afinal. Entretanto não soaram os clarins. Um grande silêncio avassalou as linhas e o acampamento.

A bandeira, um trapo nervosamente agitado, desapareceu; e, logo depois, dous sertanejos, saindo de um atravancamento impenetrável, se apresentaram ao comandante de um dos batalhões. Foram para logo conduzidos à presença do comando-em-chefe, na comissão de engenharia.

Antônio, o Beatinho

Um deles era Antônio, o «Beatinho», acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido e magro; erecto o busto adelgaçado. Levantava, com altivez de resignado, a fronte. A barba rala e curta emoldurava-lhe o rosto pequeno animado de olhos inteligentes e límpidos. Vestia camisa de azulão e, a exemplo do chefe da grei, arrimava-se a um bordão a que se esteava, andando. -Veio com outro companheiro, entre algumas praças, seguido de um séquito de curiosos.

Ao chegar à presença do general, tirou tranqüilamente o gorro azul, de listras e borlas brancas, de linho; e quedou, correto, esperando a primeira palavra do triunfador.

Não foi perdida uma sílaba única do diálogo prontamente travado.

-Quem é você?

-Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente não tem mais opinião e não agüenta mais.

E rodava lentamente o gorro nas mãos lançando sobre os circunstantes um olhar sereno.

-Bem. E o Conselheiro?...

-O nosso bom conselheiro está no céu...

Morte do Conselheiro

Explicou então que aquele, agravando-se antigo ferimento, que recebera de um estilhaço de granada atingindo-o quando em certa ocasião passava da igreja para o Santuário, morrera a 22 de setembro, de uma disenteria, uma caminheira -expressão horrendamente cômica que pôs repentinamente um burburinho de risos irreprimidos naquele lance doloroso e grave.

O Beato não os percebeu. Fingiu, talvez, não os perceber. Quedou imóvel, face impenetrável e tranqüila, de frecha sobre o general, o olhar a um tempo humilde e firme. O diálogo prosseguiu:

-E os homens não estão dispostos a se entregarem?

-Batalhei com uma porção deles para virem e não vieram porque há um bando lá que não querem. São de muita opinião. Mas não agüentam mais. Quase tudo mete a cabeça no chão de necessidade. Quase tudo está seco de sede...

-E não podes trazê-los?

-Posso não. Eles estavam em tempo de me atirar quando saí...

-Já viu quanta gente aí está, toda bem armada e bem disposta.

-Eu fiquei espantado!

A resposta foi sincera, ou admiravelmente calculada. O rosto do altareiro desmanchou-se numa expressão incisiva e rápida, de espanto.

-Pois bem. A sua gente não pode resistir, nem fugir. Volte para lá e diga aos homens que se entreguem. Não morrerão. Garanto-lhes a vida. Serão entregues ao governo da República. E diga-lhes que o governo da República é bom para todos os brasileiros. Que se entreguem. Mas sem condições; não aceito a mais pequena condição...

O Beatinho, porém, recusava-se, obstinado, à missão. Temia os próprios companheiros. Apresentava as melhores razões para não ir.

Nessa ocasião interveio o outro prisioneiro, que até então permanecera mudo.

Viu-se, pela primeira vez, um jagunço bem nutrido e destacando-se do tipo uniforme dos sertanejos. Chamava-se Bernabé José de Carvalho e era um chefe de segunda linha.

Tinha o tipo flamengo, lembrando talvez, o que não é exagerada conjectura, a ascendência de holandeses que tão largos anos por aqueles territórios do Norte trataram com o indígena.

Brilhavam-lhe, varonis, os olhos azuis e grandes; o cabelo alourado revestia-lhe, basto, a cabeça chata e enérgica.

Apresentou logo como credencial o mostrar-se duma linhagem superior. Não era um matuto largado. Era casado com uma sobrinha do capitão Pedro Celeste, do Bom Conselho...

Depois contraveio, num desgarre desabusado, insistindo com o Beatinho recalcitrante:

-Vamos! Homem! vamos embora... Eu falo uma fala com eles... deixe tudo comigo. Vamos!

E foram.

Prisioneiros

O efeito da comissão, porém, foi de todo em todo inesperado. O Beatinho voltou, passada uma hora, seguido de umas trezentas mulheres e crianças e meia dúzia de velhos imprestáveis. Parecia que os jagunços realizavam com maestria sem par o seu último ardil. Com efeito, viam-se libertos daquela multidão inútil, concorrente aos escassos recursos que acaso possuíam, e podiam, agora, mais folgadamente delongar o combate.

O Beatinho dera -quem sabe?- um golpe de mestre. Consumado diplomata, do mesmo passo poupara às chamas e às balas tantos entes miserandos e aliviara o resto dos companheiros daqueles trambolhos prejudiciais.

A crítica dos acontecimentos indica que aquilo foi, talvez, uma cilada. Nem a exclui a circunstância de ter voltado o asceta ardiloso que a engenhara. Era uma condição favorável, adrede e astuciosamente aventurada como prova iniludível da boa-fé com que agira. Mas mesmo que assim não considerassem, alentava-o uma aspiração de todo admissível: fazer o último sacrifício em prol da crença comum: devotar-se, volvendo ao acampamento, à sagração do martírio, que desejava, porventura, ardentemente, com o misticismo doentio de um iluminado. Não há interpretar de outra maneira o fato, esclarecido, ademais, pelo proceder do outro parlamentar que não voltara, permanecendo entre os lutadores, instruindo-os sem dúvida da disposição das forças sitiantes.

A entrada dos prisioneiros foi comovedora. Vinha solene, na frente, o Beatinho, teso o torso desfibrado, olhos presos no chão, e com o passo cadente e tardo exercitado desde muito nas lentas procissões que compartira. O longo cajado oscilava-lhe à mão direita, isocronamente, feito enorme batuta, compassando a marcha verdadeiramente fúnebre. A um de fundo, a fila extensa, tracejando ondulada curva pelo pendor da colina, seguia na direção do acampamento, passando ao lado do quartel da primeira coluna e acumulando-se, cem metros adiante, em repugnante congérie de corpos repulsivos em andrajos.

Os combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial, in extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o das trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os arcabouços esmirrados e sujos, cujos molambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros -a vitória tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana -do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos...

Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador domado: mulheres, sem-número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos arrastados pelos braços, passando; crianças, sem-número de crianças; velhos, sem-número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de cera, bustos dobrados, andar cambaleante.

Pormenorizava-se. Um velho absolutamente alquebrado, soerguido por alguns companheiros, perturbava o cortejo. Vinha contrafeito. Forçava por se livrar e volver atrás os passos. Voltava-se, braços trêmulos e agitados, para o arraial onde deixara certo os filhos robustos, na última refrega. E chorava. Era o único que chorava. Os demais prosseguiam impassíveis. Rígidos anciãos, aquele desfecho cruento, culminando-lhes a velhice, era um episódio somenos entre os transes da vida nos sertões. Alguns respeitosamente se desbarretavam ao passarem pelos grupos de curiosos. Destacou-se, por momentos, um. Octogenário, não se lhe dobrava o tronco. Marchava devagar e de quando em quando parava. Considerava por instantes a igreja e reatava a marcha; para estacar outra vez, dados alguns passos, voltar-se lançando novo olhar ao templo em ruínas e prosseguir, intermitentemente, à medida que se escoavam pelos seus dedos as contas de um rosário. Rezava. Era um crente. Aguardava talvez ainda o grande milagre prometido...

Alguns enfermos graves vinham carregados. Caídos logo aos primeiros passos, passavam, suspensos pelas pernas e pelos braços, entre quatro praças. Não gemiam, não estortegavam; lá se iam imóveis e mudos, olhos muito abertos e muito fixos, feito mortos. Aos lados, desorientadamente, procurando os pais que ali estavam entre os bandos ou lá embaixo mortos, adolescentes franzinos, chorando, clamando, correndo. Os menores vinham às costas dos soldados agarrados às grenhas despenteadas há três meses daqueles valentes que, havia meia hora, ainda jogavam a vida nas trincheiras e ali estavam, agora, resolvendo desastradamente, canhestras amas-secas, o problema difícil de carregar uma criança. Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra -a velha mais hedionda talvez destes sertões- a única que alevantava a cabeça espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo despidas, emaranhados, os cabelos brancos e cheios de terra, -rompia, em andar sacudido, pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz.

Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha. Lá se foi com o seu andar agitante, de atáxica, seguindo a extensa fila de infelizes...

Esta parara adiante, a um lado das tendas do esquadrão de cavalaria, represando entre as quatro linhas de um quadrado. Via-se, então, pela primeira vez, em globo, a população de Canudos; e, à parte as variantes impressas pelo sofrer diversamente suportado, sobressaía um traço de uniformidade rara nas linhas fisionômicas mais características. Raro um branco ou um negro puro. Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita de três raças.

Predominava o pardo lídimo, misto de cafre, português e tapuia, -faces brônzeas, cabelos corredios e duros ou anelados, troncos deselegantes; e aqui, e ali, um perfil corretíssimo recordando o elemento superior da mestiçagem. Em roda, vitoriosos, díspares e desunidos, o branco, o negro, o cafuz e o mulato proteiformes com todas as gradações da cor... Um contraste: a raça forte e íntegra abatida dentro de um quadrado de mestiços indefinidos e pusilânimes. Quebrara-a de todo a luta. Humilhava-se. Do ajuntamento miserando partiam pedidos flébeis e lamurientos, de esmola... Devoravam-na a fome e a sede de muitos dias.»

O comandante-geral concedera naquele mesmo dia aos últimos rebeldes um armistício de poucas horas. Mas este só teve o efeito contraproducente de retirar do trecho combatido aqueles prisioneiros inúteis.

Ao cair da tarde estavam desafogados os jagunços.

Deixaram que se esgotasse a trégua. E quando lhes anunciou o termo uma intimativa severa de dous tiros de pólvora seca seguidos logo de outro, de bala rasa, estenderam sobre os sitiantes uma descarga divergente e firme.

A noite de 2, ruidosamente, entrou sulcada de tiroteios vivos.

Não há relatar o que houve a 3 e a 4.

A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas.

Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o «hospital de sangue» dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.

E lutavam com relativa vantagem ainda.

Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39º que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperem pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os...

Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeavam-lhes o arrojo o horror de um quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada. E salteava-os a atonia do assombro...

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...

Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante -e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História?

Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro.

Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de taboa, o corpo do «famigerado e bárbaro» agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, olhos fundos cheios de terra -mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.

Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa -único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra!- faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa angulhenta de tecidos decompostos.

Fotografaram-nos depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.

Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita -e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores...

Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...

É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...

Notas à 2ª edição

Este livro, secamente atirado à publicidade, sem amparos de qualquer natureza, para que os protestos contra as falsidades que acaso encerrasse se exercitassem perfeitamente desafogados, conquistou -franca e espontânea- expressa pelo seus melhores órgãos, a grande simpatia nobilitadora da minha terra, que não solicitei e que me desvanece. Os únicos deslizes apontados pela crítica são, pela própria desvalia, bastante eloqüentes no delatarem a segurança das idéias e proposições aventadas.

É o que demonstra esta resenha rápida:

* * *

... desabrigadas de todo ante a acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos... (pág. 18)

Viu-se nesta frase uma inexatidão e um dos imaginosos traços do meu apedrejado nefelibatismo científico.

Ora, escasseando-me o tempo para citar autores, limito-me a apontar a página 168 da Geologia de Contejean sobre a erosão das rochas: «des actions physiques et chimiques produites par les eaux pluviales plus ou moins chargées d'acide carbonique -principalement sur les roches les plus attaquables aux acides, comme les calcaires, etc.»

Para o caso especial do Brasil, encontra-se ainda à página 151 do livro de Emmanuel Liais, sobre a nossa conformação geológica, a caracterização do fenômeno que «se montre en très grande échelle, sans doute à cause de la fréquence et de l'acidité des pluies d'orage.»

No entanto o crítico leciona: «Nem as chuvas causam erosões por conterem algumas moléculas a mais de nitro ou de amoníaco, senão pela rijeza da camada horizontal superior em relação às camadas moles inferiores, etc.»

Extraordinária geologia, esta...

* * *

as favelas têm, nas folhas, de estômatos expandidos em vilosidades... (pág. 42)

Apresso-me em corrigir evidentíssimo engano, tratando-se de noção tão simples.

Leia-se: nas folhas, de células expandidas em vilosidades.

* * *

É que a morfologia da Terra viola as leis gerais do clima. (pág. 52)

Outro dizer malsinado. Impugna-o respeitável cientista:

«Penso que se a natureza combate os desertos, apenas o facies geográfico modifica as condições extrínsecas do meio. E se violência importa modificação, violar é desobedecer ao preestabelecido. Assim, não há violação contra as leis gerais dos climas, eis o que não padece dúvida.»

Inexplicável contradita, esta, que investe com todas as conclusões da meteorologia moderna! Basta saber-se que sendo as leis gerais de um clima as que se derivam das relações astronômicas -as próprias ondulações dos isotermos, indisciplinadamente recurvos, mas que seguiriam os paralelos se respeitassem aquelas leis, são um atestado da violação.

Nem precisávamos exemplificar o predomínio permanente das causas particulares ou secundárias na constituição climática de qualquer país. De Santos, cujo clima equatorial é uma anomalia em latitude superior à do trópico, à Groenlândia coberta de gelos fronteira às paragens benignas da Noruega, encontraríamos esplêndidos exemplos.

Ainda recentemente no belo livro sobre a psicologia dos ingleses, Boutmy assinala o fato de ter a Inglaterra, no paralelo de 52º, temperatura igual a 32º de latitude, dos Estados Unidos.

Quem quer que acompanhe num mapa o isotermo de 0º, partirá da frigidíssima Islândia, avançará para o sul, numa curva caprichosa, para a Inglaterra, que não tocará; torcerá depois para o extremo norte da Noruega; e volverá de novo ao sul e se aproximará, nos meses frios, de Paris e de Viena -que assim se ligam, malgrado latitudes muito mais baixas, à enregelada terra polar.

E o viajante que perlonga a nossa costa, do Rio à Bahia, demandando o Equador, não vai também por uma linha quase inalterável, traduzindo geometricamente um regime constante, espelhado na uniforme opulência das matas que ajardinam o litoral vastíssimo?

Mas se parar em qualquer ponto e avançar para o ocidente, por um paralelo, pela linha definidora, astronomicamente, da uniformidade climática, deparará transcorridas poucas dezenas de léguas habitats inteiramente outros.

Não estão, nestes exemplos, que multiplicaríamos se quiséssemos, palmares violações das leis gerais dos climas?

* * *

Uma contradição apontada pelo mesmo crítico, diz ele:

«... vejo à pág. 70 os dizeres categóricos: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. E à pág. 616 lá está a proposição de que em Canudos se atacava a rocha viva da nossa raça

Neste salto mortal de 616 - 70 = 546 páginas é natural que se encontrem cousas disparatadas. Mas quem segue as considerações que alinhei acerca da nossa gênese, se compreende que de fato não temos unidade de raça, admite também que nos vários caldeamentos operados eu encontrei no tipo sertanejo uma subcategoria étnica já formada (pág. 108) liberta pelas condições históricas (pág. 112) das exigências de uma civilização de empréstimo que lhe perturbariam a constituição definitiva.

Quer isto dizer que neste composto indefinível -o brasileiro- encontrei alguma cousa que é estável, um ponto de resistência recordando a molécula integrante das cristalizações iniciadas. E era natural que, admitida a arrojada e animadora conjectura de que estamos destinados à integridade nacional, eu visse naqueles rijos caboclos o núcleo da força da nossa constituição futura, a rocha viva da nossa raça.

Rocha viva... A locução sugere-me um símile eloqüente.

De fato, a nossa formação como a do granito surge de três elementos principais. Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura, do feldspato decomposto, variamente colorida; além a mica fracionada, rebrilhando escassamente sobre o chão; adiante a arena friável, do quartzo triturado; mais longe o bloco moutonné, de aparência errática; e por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de outros, adventícios, formando o incaracterístico solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais estranhos trazidos pelos ventos, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros.

Assim, à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de todo definida, do local. Ora o nosso caso é idêntico -desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão.

A princípio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter. Não há distinguir-se o brasileiro no intricado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmus indefinido da nossa raça. Mas entranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos fixos -o caipira, no Sul, e o tabaréu, ao Norte- onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares do cruzamento. Mas à medida que prosseguimos estas últimas se atenuam.

Vai-se notando maior uniformidade de caracteres físicos e morais. Por fim, a rocha viva -o sertanejo.

* * *

Mas não fujo ainda a nova objeção, porque

«se tivemos inopinadamente ressurgida e armada em nossa frente uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doudo, se tivemos aquilo (continua o crítico) não se compreende como na guerra de Canudos se atacasse a "rocha viva da nossa raça".»

Ao falar em sociedade morta, referi-me a uma situação excepcional da gente sertaneja corrompida por um núcleo de agitados (pág. 206). O mesmo paralelo feito na mesma página com estados idênticos de outros povos, delata-lhe o caráter excepcional. De modo algum enunciei uma proposição geral e permanente, senão transitória e especial, reduzida a um fragmento do espaço -Canudos- e a um intervalo de tempo -o ano de 1897.

Nada mais límpido. Encontraríamos perfeito símile nessa misteriosa isomeria, mercê da qual corpos identicamente constituídos, com os mesmos átomos num arranjo semelhante, apresentam todavia propriedades diversíssimas. Assim pensando -e que se não irritem demais as sensitivas do nosso meio científico com mais esta arrancada feroz de nefelibatismo- eu vejo, e todos podem ver, no jagunço um corpo isômero do sertanejo. E compreendo que Antônio Conselheiro repontasse como uma «integração de caracteres diferenciais, vagos e indefinidos, mal percebidos quando dispersos pela multidão» -e não como simples caso patológico, porque a sua figura de pequeno grande homem se explica precisamente pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento.

* * *

A própria caatinga ali assume aspecto novo. E uma melhor caracterização talvez a definisse mais acertadamente como a paragem clássica das caatanduvas etc. (pág. 229)

Isto também sugeriu reparos. Prestadios amadores estremecendo por todas as corolas da botânica apisoadas pelo meu nefelibatismo científico (eterno labéu!) puseram embargos ao dizer, doutrina (sic) errônea do livro.

E pontificaram: «caatinga (mato ruim) é o resultado não do terreno mas da secura do ar, ao passo que as caatanduvas são florestas cloróticas (mato doente) resultante da porosidade e da secura do solo.»

Adorável objeção. Começa insurgindo-se contra o tupi; termina insurgindo-se contra o português.

Caatinga (mato ruim!)... Caatanduva (mato doente!)...

Florestas cloróticas... Clorose de uma planta significando, em vernáculo, o seu «estiolamento», isto é, alteração mórbida determinada pela falta da luz, são originalíssimas aquelas matas nas regiões brasileiras onde vegetam em pleno fustigar dos sóis!

Quando à célebre doutrina, duas palavras. A discriminação dos aspectos da nossa flora, é ainda um problema que aguarda solução clara.

Observando que o aspecto principal da caatinga (mato branco) é o de um cerrado rarefeito e tolhiço; e que o da caatanduva (mato mau, áspero, doente) é o de uma mata enfezada e dura, tracei a frase combatida porque a flórula indicada, diversa da que prepondera no sertão, me despontou aos olhos realmente com a última aparência.

* * *

Notaram-se, em todas as páginas, termos que vários críticos caracterizaram como invenções ou galicismos imperdoáveis. Mas foram infelizes com os que apontaram. Cito-os e defendo-os.

Esbotenar - esboicelar, esborcinar. (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido Figueiredo.)

Ensofregar - tornar sôfrego. (Dicionário Contemporâneo, de Aulete.)

Preposterar - inverter a ordem de qualquer cousa. (Idem).

Impacto - metido à força. (Idem).

Refrão - consideraram-no galicismo. Replico com a frase de um mestre, Castilho: «Eis o eterno refrão com que nos quebram o bichinho do ouvido.»

Inusitado - também se considerou francesismo. Em latim, inusitatus.

Não notaram outros. Antes considerassem à pág. 296, linha 6ª, a deplorável tortura de um verbo intransitivo que sucessivas revisões não libertaram; e outros que exigem mais séria mondadura.

* * *

... Mercenários inconscientes.

(Pág. VI). Estranhou-se a expressão. Mas devo mantê-la; mantenho-a.

Não tive o intuito de defender os sertanejos porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque.

Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente desafiador, com os singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade. Ninguém o negará.

E se não temesse envaidar-me em paralelo que não mereço, gravaria na primeira página a frase nobremente sincera de Tucídides, ao escrever a história da guerra do Peloponeso -porque eu também, embora sem a mesma visão aquilina, escrevi

«sem dar crédito às primeiras testemunhas que encontrei, nem às minhas próprias impressões, mas narrando apenas os acontecimentos de que fui espectador ou sobre os quais tive informações seguras.»


27-4-1903.

EUCLIDES DA CUNHA