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Deportação do Brasil e prisão nos cárceres portugueses de um jesuíta alemão: O P. Anselmo Eckart1

Inmaculada Fernández Arrillaga


Universidade de Alicante



Enquanto estudávamos a Colección de Papeles Curiosos do jesuíta espanhol Manuel Luengo, deparámos com o extracto de um diário que tinha sido escrito por outro regular da Companhia, o padre Anselmo Eckart2. Esta recopilação foi conservada por outro sacerdote português, Manuel Azevedo3, e à sua morte licou nas mãos de dois jesuítas da Província de Castela4. Os desterrados espanhóis, crendo que podiam ser de transcendência, e conhecedores do trabalho de «Arquivo» que na exilada Província Castelhana desenvolvia o padre Luengo, decìdiram enviar-lhe alguns destes documentos portugueses.

Enquanto o P. Luengo estudava toda essa documentação, descobriu La historia de la persecución de la Compañía de Jesús en Portugal, um dos muitos diários que escreveram os jesuítas lusos após a sua expulsão5. Tratava-se de uma narrativa sobre alguns dos acontecimentos que mais influíram na história da Assistência Portuguesa da Companhia de Jesus durante a segunda metade do século XVIII e resumia algunas experiências de missionários americanos e asiáticos e a expulsão dos que residiam na metrópole. O P. Eckart escreveu-o em 1777 quando saiu dos lúgubres cárceres lisboetas e, segundo ele mesmo explica, fê-lo a pedido de alguns amigos; portanto, é um documento que carece de espontaneidade, muito meditado, com uma temática pensada e estruturado cronológicamente. O P. Eckart vai dividindo por anos os acontecimentos relativos à Companhia em todo o mundo, os ocorridos a jesuítas relevantes e os vividos por ele mesmo junto a outros regulares procedentes das colónias ultramarinas com os quais estava preso em Lisboa. O que perde em espontaneidade ganha em engenho, conseguindo transladar os leitores para as diferentes paisagens que descreve com singular atractivo graças à sua redacção amena.




De 1754 a 1769

O manuscrito que Luengo conservou abarca desde 1754 até 1769; em ambos os anos tiveram lugar duas mortes de particular importância para o avanço da política regalista em Portugal e na Europa católica e que, logicamente, influenciaran negativamente o futuro da Ordem inaciana.

Durante o verão desse ano com que se inicia o Diário, agonizava e morria Dona Maria Ana6, filha do Imperador Leopoldo, casada com João V de Portugal, mãe de José I e fiel benfeitora da Companhia. A partir desse momento, começariam a gotejar os decretos de desterro de jesuítas responsáveis de algumas das Reduções do Grão-Pará e Maranhão, capitania que estava debaixo das ordens severas de Francisco de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal. Este govemador não se cansou de inculpar os missionários da Companhia de resistência à autoridade, assegurando que alguns jesuítas haviam chegado a enfrentar o poder governativo com as armas que escondiam nas suas Reduções, favorecendo uma perniciosa influência nos indígenas. Graças a estas incessantes denúncias, os ministros da Corte de Lisboa viram-se com forças para exigir ao pontífice medidas contra os superiores daquelas missões. Não esqueçamos que os jesuítas protegiam um dos tesouros mais procurados pelos portugueses na América: os indios, mão-de-obra muito necessária nas recém-descobertas minas amazónicas de ouro e esmeraldas.

A outra data chave, em que acaba o manuscrito, é a de 2 de Fevereiro de 1769, dia em que falecia Clemente XIII em Roma; um pontífice que sempre defendeu a Companhia e que teve que defrontar-se com as expulsões desta Ordem em quatro reinos europeus: Portugal, França, Espanha e Nápoles. Com a sua morte, desaparecia um dos obstáculos que haviam tido estas Cortes para levar a cabo uma política própria, sem sujeições às exigências de Roma, e iniciava-se a luta para conseguir um sucessor de Sao Pedro que não se interpusesse aos objectivos regalistas. Um dos requisitos inquestionáveis era o desaparecimento da Companhia de Jesus, defensora até às últimas consequências dos interesses pontificios, aos quais a submetia o seu quarto voto de obediência, o mesmo que limitava o controle da Ordem nas monarquias onde residiam os jesuítas.




Traduções

O P. Luengo considerava que este documento era de tanto interesse que encomendou a sua tradução do latim original para o castelhano, responsabilidade que recaiu sobre o P. José Gallardo. Os temores de Luengo de que desaparecesse um texto tão revelador não se apaziguaram quando soube que o manuscrito que ele possuía não estava completo, nem ainda ao saber que um luterano, protector dos jesuítas, Cristóbal Murr7, havia incluído o documento do P. Eckart numa obra que se projectava editar em Nuremberga por volta de 17808. Von Murr foi um investigador erudito, natural de Nuremberga, de reconhecido prestígio, analizado por uma vasta quantidade de obras publicadas na Alemanha por ele ou sob o seu patrocínio e nas quais se interessava tanto pela História como pela Filosofia, a Música ou a Teologia.

Depois da sua edição por Murr, o diário do P. Eckart gozou de tanto êxito que foram várias as traduções realizadas do latim original, concretamente duas para francês9 e duas para português10. Graças às precauções do diarista castelhano, também se conserva a referida versão do P. Gallardo11, que parece ser a única tradução em espanhol, e que irá ser objecto de estudo neste trabalho.




Conflicto aberto

Anselmo Eckart nasceu a 4 de agosto de 1721 em Bingen (Mainz), no seio de Lima família abastada -seu pai fora conselheiro do Eleitor de Mogúncia- e entrou na Companhia de Jesus a 12 de Julho de 1740; mais tarde, a 2 de Junho de 1753, embarcou em Lisboa com rumo ao Maranhào12. Recordemos que a chegada dos primeiros jesuítas a Portugal se fez pela mão de São Francisco Xavier em 1540 e foram protegidos pela Coroa portuguesa no momento em que reinava João III; desde então não deixaram de expandir-se, sobretudo pelas colónias do ultramar onde, seguindo o exemplo do santo, gozaran de grande prestígio. Granjearan nao menor influência no terreno da Pedagogia, como o demonstra a sua importante presença na Universidade de Coimbra13.

Mas a situação era radicalmente distinta quando Eckart chegou ao Maranhào, pois reinava então José I e a Corte de Lisboa impulsionava reformas importantes com o objectivo de conseguir um maior controlo da economia lusa e da Igreja; por conseguinte, mantinham-se relações tensas com a Santa Sé.

O expoente máximo desta política reformista foi Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro-ministro desde o ano da coroação de D. José I e mais conhecido como Marquês de Pombal a partir de 1769. A política reformista de Pombal foi tão dura na sua aplicação que até o ministro napolitano Tanucci, regalista acima de qualquer suspeita, reprovava no seu congénere português a ferocidade com que aplicava a sua raison d'état contra os próprios jesuítas e os núncios que chegavam a Lisboa para representar a Santa Sé.

Os problemas com Roma já vinham de trás; em 1728 D. João V nao teve em consideração as recomendações do seu confessor, o jesuíta Carbone, e ordenou que saísse de Portugal o emissário papal, interrompendo as relações com a Santa Sé, ruptura que se estendeu até 1731, primeiro ano do pontificado do moderado Clemente XII. Logicamente, com estes precedentes e com um ministro como Pombal no poder, a convivência com os jesuítas não podia ser cómoda. Estes não só se haviam expandido pelo pequeno território peninsular, onde exerciam urna notável influência na nobreza que desde há muito educavam, como o seu ascendente nas imensas colónias lusas começava a ser preocupante para os governantes.

Por outro lado, as incursões de aventureiros portugueses em terras americanas reivindicadas pelos espanhóis agudizavam a tensão entre ambos os Estados que tinham chegado a um ambiguo acordo fronteiriço em 16 de Janeiro de 175014.

Os jesuítas opuseram-se a esse Tratado, uma vez que precisamente na zona em conflito abundavam as contenciosas Reduções, nas quais os padres da Companhia refugiavam os indígenas. Mas nao eram só essas concentrações de indios «livres» dependentes dos padres que preocupavam os portugueses. Estes argumentavam também que nas missões a riqueza aumentava por contar com trabalhadores baratos, com a isenção de impostos directos e indirectos, além da comercialização dos seus produtos garantir um preço muito mais competitivo e sem nenhum controle estatal. Para travar o dominio político e económico dos jesuítas na zona do Amazonas, Pará, Maranhão e no resto dos territórios onde estavam as aldeias dos padres, Pombal enviou a Bento XIV a sua declaração de guerra aberta contra os jesuítas redigida na Relação Abreviada15 sobre as actividades comerciais e religiosas dos jesuítas no Brasil. Segundo Pombal:

os padres tinham-se estado a aproveitar dos índios, tinham-nos incitado contra o Tratado de limites, propuseram-lhes um índio como Rei, persuadindo os infelizes que a sua influência na Corte de Madrid era muito grande, e de que o confessor real [refere-se ao P. Rábago] lhes tinha assegurado que não se farra nenhuma mudança nas reduções. Não caía a responsabilidade da guerra sobre os inocentes guaranis, mas sobre os jesuítas16'.






Na Missão de Trocano

É no meio desta tensa situação que encontramos o padre Eckart na missão de Trocano, localizada ao sul de Manaus, onde hoje se encontra a cidade de Borba; tratava-se de uma das Reduções mais prósperas das que estavam situadas na orla do rio Madeira que o P. José António17 governou até 1755 mas que passou a ser responsabilidade de Eckart quando nesse ano António foi desterrado juntamente com outros dois membros da Companhia de Jesus, naquela que foi a primeira deportação de jesuítas da Assistência de Portugal18. Trocano encontrava-se rodeada por outras aldeias dirigidas também por membros da Companhia, como a missão de Abacaxis que, a uma distância «de só dois dias através da selva», Antonio Meisterburg dirigia19.

Pombal suspeitava que Eckart e Antonio Meisterburg eram «mais engenheiros militares do que jesuítas» que, armados com peças de artilharia, intentavam ocupar a região de Trocano com o fim de impedir a fundação de Borba-a-Nova o ajudar os jesuítas espanhóis que mantinham uma contenda naquela zona fronteiriça20. Segundo Caeiro -cronista da expulsão dos jesuítas de Portugal com a sua obra já citada-, os jesuítas alemães só pretendiam transportar dois canhões para jamar¡, uma missão regida por Eckart, desde Junho de 1755 até 1 de Janeiro do ano seguinte, dia em que os enviados do governador queriam que se lhes entregasse a vila para fundar Borba-a-Nova. Defende Caeiro que os canhões tinham como única função dar maior solenidade a algumas festas religiosas, e que a cidade foi entregue com toda a normalidade e sem nenhum tipo de confronto armado21.

Por seu lado, Eckart, em missiva que dirigia ao P. Malagrida em 175622, informava-o do pelourinho que os portugueses haviam fixado em Trocano e com o qual se deixava firme a jurisdição que de então em diante os ministros reais tinham naquele território, mas em nenhum momento refere qualquer tipo de confronto com os portugueses; resignado mas nao submisso afirmava: «era forçoso obedecer cedendo ocampo e rebanho à discrição de lobos carniceiros». Para complicar ainda mais a situação dos jesuítas no Brasil, por aquele mesmo tempo chegava à América um novo decreto do Rei «melhor direi de Carvalho» -alegava Eckart-, pelo qual se intimava o desterro de outros dois jesuítas pertencentes à Assistência Portuguesa, seguindo os modelos de banimentos anteriores e dando continuidade a uma série de expulsões paulatinas e pontuais23 que não finalizaria até à deportação generalizada de todos os jesuítas portugueses no início de 1759.




Deportação para Portugal

Seguindo essa política de «expulsão gota a gota», Anselmo Eckart e o seu amigo Antonio Meisterburg forain desterrados em finais do mês de Novembro de 1757, juntamente cour outro padre alemão, Lorenzo Kauslen, e deportados para Portugal numa embarcação de guerra que, nos últimos dias de Novembro, se fez à vela cour destino a Lisboa.

Durante a viagem pelo Atlântico, um dos barcos mercantes que se protegia no comboio sofreu uma avaria e tiveram que passar alguns dias nos Barbados. Zarparam dessas ilhas em finais de Dezembro e, já em pleno Atlântico, uma embarcação estrangeira, de que não puderam distinguir nenhum sinal que identificasse a sua nacionalidade, começou a persegui-los e a abrir fogo contra o comboio luso; de facto, a única bala que os estranhos dispararam esteve prestes a acabar cour a vida do comandante, em consequência do, qual se fizeram a bordo todos os preparativos para o combate. Mas o encontro nao se concretizou já que ao fim de três dias o navio inimigo tinha desaparecido. Uns dias mais tarde, duas embarcações inglesas confundiram-nos cour franceses e insistiram em abordá-los para registar a sua documentação; os portugueses aceitaran e mantiveram-se parados enquanto os intrusos examinavam cartas de navegação e passaportes. Afiançado o engano, os ingleses despediram-se e prosseguiram a sua viagem.

Antes de chegar aos Açores, descobriram ao longe outras duas embarcações, provocando-se a bordo o lógico tumulto da marinhagem; assim que se acercaram, pôde observar-se como içavam repentinamente a vela maior, cour uma manobra que devia ser algum sinal de entendimento porque imediatamente «se levantou uma algazarra e regozijo entre a chusma e a soldadesca que dissipou bem depressa o cuidado e susto da batalha»24, pois tratava-se de barcos também portugueses pertencentes à Companhia Geral do Grão-Pará e do Maranhão.

Precisamente, numa delas viajavam alguns dos jesuítas desterrados uns dias antes do P. Eckart e, junto a eles, tinha sido também expatriado e seguia para Lisboa o Ouvidor do Maranhão, por suspeitar-se na cidade da sua amizade íntima com os jesuítas.

Finalmente, depois de dois meses e meio de navegação, alcançaram a Barra do Tejo a 12 de Fevereiro de 1758; três dias mais tarde atracaram em Lisboa e conforme desciam dos navios faziam-nos entrar numa das oito caleches que, por ordem de Pombal, esperavam os quinze desterrados para trasladá-los para o local da sua reclusão perto da cidade nortenha de Braga.

Começaram a viagem por terra pernoitando em Sacavém e na manhà seguinte incorporaram-se na comitiva um «meirinho da Corte» ou comissário real acompanhado do seu ajudante para os escoltar no traslado. Esta deslocação pareceu ao P. Eckart mais dura que o periplo marítimo desde o Brasil; queixava-se das baixas temperaturas que padeceram e do mau estado dos caminhos. O jesuíta, que viajava juntamente com o P. David Fay25, assegurava que em mais do que uma ocasião ambos temeram pela sua vida, dada a frequência com que a sua caleche «se trastornava».




A Relação abreviada

Foi também durante essa viagem que Eckart teve entre mãos a edição publicada em Lisboa um ano antes, em 1757, do famoso libelo intitulado Relação abreviada da República [do Paraguai e Maranhão]26. O P. Eckart considerava-o um folheto difamatório que não merecia crédito algum porque os factos que descrevia sobre a actuação dos missionários do Paraguai, estavam «uns mal digeridos e outros resultavam notoriamente falsos» e congratulava-se de que outro jesuíta, o espanhol Juan del Campo y Cambroneras, houvesse publicado em castelhano uma resposta contundente a este alucinado panfleto27.

O que mais escandalizou o diarista foi que nessa Relação apareceram imputações contra ele e falsidades contra o seu amigo o Antonio Meisterburg. O P. Anselmo Eckart explicava no seu documento como no mês de Janeiro de 1756 os lusos fundarara uma nova cidade à quai chamaram Borba-a-Nova28 no lugar onde até então se levantava a Redução de Trocano e na qual, segundo a Relação, viviam o P. Eckart e o P. Meisterburg29 impondo as suas próprias normas e com a intenção de estabelecer o seu Imperio.

O diarista acometeu contra essas afirmações, argumentando que o que ocorreu nao foi senão uma farsa orquestrada desde Lisboa na qual, na manhà de 20 de Dezembro de 1755, apareceu repentinamente na missão o Governador Fernando de Mendonça escoltado por uma companhia de granadeiros, e sem mais requisitos comunicou ao P. Eckart a sua intenção de enobrecer aquela povoação com o honroso título de vila. Era sabido que a novo estado novas leis. Mendonça ordenou que se cortasse uma das árvores mais altas de um bosque al¡ perto e com ela se construísse um pelourinho que, no primeiro dia de Janeiro de 1756, foi colocado no centro da recentemente ascendida a vila que, a partir desse momento, deixava de ser a jesuítica missão de Trocano. Para realar a nova vila deliberou-se que fosse nela que se reunissem as juntas dos comissários das Coroas espanhola e lusa encarregados de propor os limites fronteiriços.

Também se acusavam estes dois jesuítas alemães de conspirar contra as autoridades portuguesas possuindo irregularmente armas de fogo. O P. Eckart remontava-se a 1725 para explicar como tinham chegado à missão dois canhões de artilharia com os quais, anos atrás, outros irmãos da sua ordem tinham intentado proteger-se de indios insurrectos e cujo armamento havia sido adquirido com a autorização do então governador D. João da Maya, que deu a oportuna licença com toda a naturalidade. Desde então, e depois de algumas transferências, os canhões chegaram a fazer parte dos objectos de Trocano, arrumados entre outros utensílios, tendo sido utilizados muito pontualmente e somente em salvas.

Entre as acusações que se faziam na Relação a estes dois jesuítas a que mais estranheza causou a Eckart foi a de que ambos os religiosos eram engenheiros estrangeiros disfarçados de jesuítas; «fazem-nos a mercê de nos contar entre os Mestres consumados de tal profissão -dizia Eckart- quando nao sabemos rigorosamente nada dela»30. Quanto à autoria do libelo antijesuíta, não mostrava o P. Eckart nenhum interesse em averiguá-la, mas ressaltava a desmedida inclinação que Pombal havia mostrado em espalhá-lo e que se fizesse público não só na capital da metrópole, mas também em outras europeias, chegando inclusive a enviar uma cópia ao Vaticano «onde foi recebido pelos naturais com o desprezo que mereciam tais fábulas». Ainda assim Eckart assegurava que não só este escrito se tinha propagado em Roma, mas também havia reimpresso às suas custas o Pagliarini traduzido em italiano com o título de I lupi smascherati31 e a instâncias do mesmo Carvalho publicara-se em Madrid, traduzido para espanhol, outra injuriosa obra contra a Companhia intitulada: Retrato de los jesuitas formado al natural por los más sabios y más ilustres católicos32.




Reclusão em Sanfins

Os jesuítas alemães chegaram à província situada entre o Douro e o Minho, e à sua passagem pelo Porto o P. Eckart não soube resistir a descrever no seu Diário as consequências do motim que, um ano antes, ocorrera nessa cidade, relatando como tinham pendurado as cabeças «de dezoito infelizes» nos postes altos erguidos para que servissem de correctivo aos que se haviam negado à fundação da Companhia de Vinhos33, criada por Pombal em 1756. O interesse do P. Eckart em deter-se a escrever as crueldades ordenadas pelo Primeiro-Ministro luso fundava-se na crença que tinham alguns jesuítas de que Pombal recomendara aos comissários enviados ao Porto para sufocar os tumultos que fizessem todo o tipo de esforços para conseguir que se implicassem estes regulares como instigadores daqueles motins34.

Nos princípios de março de 1758, os jesuítas deportados foram repartidos entre distintas granjas e casas dependentes do Colégio da Companhia em Braga; o P. Fay e Anselmo Eckart foram destinados à residência de Sanfins, à quai chegaram no dia 8. A partir daqui o Diário centra-se mais em acontecimentos políticos, como o atentado contra o rei de Portugal de setembro desse mesmo ano; ou em comentários de publicações que prejudicavam a sua Ordem: a polémica entre a encíclica do Cardeal Saldanha e a resposta do P. Malagrida, defendendo o trabalho dos jesuítas nas missões, é so um exemplo. Em finais de Dezembro descreve como foram cercados os colégios da Companhia em Lisboa e dois meses mais tarde, durante a madrugada do dia 15 para 16 de Fevereiro de 1759, a prisão generalizada nas suas casas e colégios de todos os jesuítas da Assistência Portuguesa.

A residência de Sanfins nao foi excepção e Eckart relata como foi examinada toda a casa por soldados armados que -em sua opinião- só procuravam dinheiro e embargaram depois todos os seus bens, encarregando-o a ele da elaboração de um catálogo dos livros, uns quinhentos volumes, que conservava a biblioteca, local no quai havia sido preso e ¡solado do resto dos seus companheiros poucos dias depois da intimação da expulsão.




Braga, Porto, Almeida

A 20 de Fevereiro foram conduzidos a vários cárceres lisboetas alguns dos procuradores das províncias ultramarinas: o responsável da China, o do Japão, dois do Brasil e outros dois de Goa. Os jesuítas de Sanfins juntamente com os da casa de S. João de Longos Valles saíram para Braga nos finais desse mês. A descrição da viagem recorda-nos as dos escritos dos jesuítas espanhóis nos seus traslados até às casas onde foram reunidos para o embarque: «um imenso povo de gente saiu ao caminho a ver-nos e começámos a caminhar entre as lágrimas e suspiros de muitos pobres que recebiam em nossa casa de esmola o pão de cada dia»35.

O P. Eckart viajava separado dos seus irmãos, em último lugar, protegido por quatro soldados a cavalo e con dois oficiais e um alcaide da cidade de Valença, o que nos dá una ideia da perigosidade que se supunha advir dos estrangeiros, os quais sempre que as condições o possibilitaram, foram apartados do resto dos jesuítas pertencentes à Assistência de Portugal.

O facto de Anselmo Eckart escrever estas linhas muitos anos depois dos factos que narra possibilitou-lhe acrescentar algunas reflexões sobre diversas questões políticas ou acerca das negociações que se levavam a cabo entre Lisboa e a Santa Sé naquele momento; neste caso nao evitou prodigalizar comentários sobre a carta que enviou Clemente XIII ao Fidelíssimo solicitando que se reconsiderassem as represálias que se estavam a tomar contra os jesuítas e que se centrassem os castigos sobre aqueles religiosos que tivessem demonstrado ter cometido regicidio36. O P. Eckart comentava que Pombal nunca quis receber a carta pontificia das mãos do núncio Acciajuolo aduzindo -em palavras de Eckart- que Portugal seguiria o hábito de Roma, que costumava nao conceder a Lisboa as suas petições.

A prisão que sofreram no Colégio de Braga alargou-se por um espaço de seis meses e a 3 de setembro de 1759, quando se cumpria pontualmente um ano sobre o atentado que sofreu D. José I, Pombal assinou o decreto de expulsão de todos os jesuítas dos dominios de Portugal.

... a quinze de setembro pôs-se em execução este Decreto. Bem entrada a noite colocaran num barco estrangeiro mais de cem jesuítas (eran todos professos) dos colégios de Lisboa, Évora e Coimbra e, escoltados por um navio de guerra nacional até aos confins do Reino, fizeram-se à vela37.



Eram os primeiros expatriados, de Portugal, aos que se iriam unindo nos Estados Pontificios mais de 1500 expulsos, permanecendo cerca de cem -os de pior sorte- prisioneiros nos temíveis cárceres lusos, entre eles Anselmo Eckart.

O diarista foi transferido em novembro desse ano, abandonando Braga em direcção ao Porto. Nessa cidade estremeceu ao ver como uma embarcação carregada de jesuítas esperava bom vento para se fazer ao mar rumo a Civitavecchia. E, depois de uma viagem tormentosa que Eckart começa poeticamente: «chorava o céu enlutado e chuvoso o posso cativeiro e escoltadas as liteiras por todas as partes de tropa militar chegámos...» aos cárceres de Almeida, uma cidade fortaleza fronteiriça com a espanhola comarca salamantina, e conhecida por um descritivo adágio: «Almeida nove meses de inverno e três de inferno». Ali preparara-se uma série de calabouços individuais onde permaneceram, sem contacto entre eles, com grilhetas e em condições infra-humanas, dezoito jesuítas da Província do Maranhão e três da de Portugal.

Ainda que, durante esta estadia na prisão, Eckart maquinasse para escrever as experiências da sua detenção e posterior prisão, os seus papéis foram sempre descobertos e destruidos pelos seus carcereiros38. Por isso no Diário que redigiu já em liberdade se observa como intercala entre as suas vivências em Almeida alguns acontecimentos políticos e comentários sobre eles que naquele momento não pôde conhecer nem muito menos analisar com o detalhe que relata. Entre estes destacaremos as festas pela boda da Princesa do Brasil, Dona Maria com o seu tio, o príncipe Dom Pedro, irmão de José I; o convite que Pombal fez ao Núncio pontificio para que abandonasse Portugal em 176039; a chegada a Lisboa, em dezembro desse ano, dos jesuítas da Província do Maranhão e a correspondente detenção dos estrangeiros na prisão de Sao Julião40, onde por aquele tempo se amontoavam mais de uma centena de jesuítas «apertados como sardinhas em canastra».

Do mesmo modo anotou o encarceramento dos jesuítas da Ásia41 e posterior transferência para a capital lisboeta, onde desembarcaram a 24 de Maio de 1761. Também neste caso foram levados para o cárcere os estranhos a essas Províncias; entre eles um jesuíta espanhol, Manuel Guevara pertencente à Província de Toledo, que estava em Goa a visitar o sepulcro de São Francisco Xavier e ingressou moribundo em São Julião. Por sua parte, os membros da Província do Malabar foram os únicos que puderam escapar à perseguição dos enviados de Pombal graças à protecção dos príncipes daquelas terras. Mas onde Eckart mais se expande é, logicamente, no relato da causa e sentença contra o P. Malagrida, a que dedica um significativo número de páginas no seu documento e todo o tipo de comentários em defesa do controverso jesuíta.




Viagem para Lisboa

Em Janeiro de 1762 chegaram ordens de transferência ao forte de Almeida; já havia alguns dias que Eckart notava o desassossego das tropas e, pelos ruídos que ouvia, chegara a pensar que se tinha incrementado o seu número. Na opinião de Maxwell42, a posição de Portugal foi-se tornando cada vez mais precaria à medida que se criavam as condições para o Terceiro Pacto de Família entre a França e a Espanha. Os objectivos franceses, que nesse momento se estendiam à Península Ibérica, incluíam impedir a entrada do comércio britânico no continente, inclusive embargar o acesso britânico aos portos portugueses no Atlántico, forçando assim Portugal a sair da sua neutralidade para entrar na disputa. Estimuladas pelos franceses, e para fortalecer essas exigências, em 1762 as forças espanholas entravam em Portugal.

Isto podia explicar que no dia vinte e oito às sete da manhã dois oficiais intimavam a ordem ao diarista e, permitindo-lhe recolher o essencial, instaram-no a segui-los. Junto a ele viajariam outros seis jesuítas, três portugueses e outros tantos estrangeiros. Assim, escoltado por tropa ligeira a cavalo, empreendeu uma viagem de que desconhecia o local do término. Assim que saiu, soube da execução do P. Malagrida e ao segundo dia caiu enfermo; as suas repetidas perdas de sentidos e as de outros dois padres alemães, atribuíam-nas os jesuítas à repentina mudança produzida ao sair do hediondo calabouço e respirar, depois de dois anos, ar puro e fresco.

Chegaram a Lisboa na noite do dia 9 e foram levados para o forte da Junqueira distando uma hora da capital.

Ali permaneciam encarcerados alguns nobres e familias de renome como a do Conde de São Lourenço. Todos eles se tinham oposto à política pombalina e sofriam as consequências, ainda que para Eckart o grande delito que tinham cometido fosse simpatizar com o padre Malagrida. Era tal o número de presos que não puderam receber os jesuítas e, três horas depois da sua chegada, empreenderam novamente a viagem em direcção a Belém onde passaram a noite no carcere público. Na manhã seguinte, depois de duas semanas de caminho, passaram do purgatório do forte de Almeida ao inferno das galeras de S. Julião da Barra.




S. Julião da Barra

As anotações de Eckart sobre as condições de vida dos presos neste castelo impressionam. As celas em que viviam os jesuítas estavam abaixo do nível do solo e quando chovia o rio Tejo atravessava sem dificuldade as paredes de urnas masmorras que geralmente permaneciam na mais profunda obscuridade. No mês da sua chegada houve urnas fortes chuvas e tiveram que ser desalojados para outras celas de construção tao recente que pressionando com as mãos nas paredes «ficavam impressos os cinco dedos»; naquele local o permanente ruido da fundição de armas e a contínua gritaria dos soldados nao permitiam conciliar o sono.

A partir desse ano, Eckart centrou o seu escrito na descrição das condições infra-humanas que padeceram no seu presidio e a comentar a expulsão dos seul irmãos de França cm 1764, a chegada de novos prisioneiros aos cárceres lusos, as detenções dos jesuítas de Macau e sua viagem para o desterro, os falecimentos de alguns regulares em São Julião e o estado deplorável em que ficavam os vivos, a expulsão da Companhia de Espanha em 1767, a de Nápoles, o desterro dos parmesãos e todos os «desaforos de Carvalho» durante esse tempo: a sua intervenção na Universidade de Coimbra, a prisão do bispo de Coimbra, Miguel da Anunciada, etc.

Em 1769, comenta a morte do Papa Clemente XIII e os cuidados que Pombal colocava na hora em que se elegesse um novo pontífice. A eleição de Clemente XIV «esperado mui de antemão e com mil votos e preces desejado pelos Arandas, Choiseules, Tanucis e Carvalhos». Com o novo atentado que sem consequências sofreu D. José I às mãos de um transtornado a quem Eckart critica sem piedade, termina esse ano a tradução manuscrita que nos chegou. Mas o original em latim continuava até 1777 ano em que, depois da morte do Fidelíssimo, resulta inevitável, como já tinham vaticinado alguns dos seus inimigos anos antes, a queda de Pombal. A nova rainha, D. Maria I, havia sido durante muìto tempo o foco das esperanças dos opositores à política pombalina e sabia-se que tanto ela como o seu marido se inclinavam em direcção a posturas que favoreciam os jesuítas que nesse mesmo ano foram postos em liberdade. Eckart também relata a sua própria viagem, em Julho desse mesmo ano, até Génova, Milão e Munique onde foi recebido pelo Eleitor da Baviera. Anos depois conseguiu reunir-se com os jesuítas acolhidos por Catarina II convertendo-se em mestre de Noviços na Rússia Branca, entre eles Jan Roothaan, futuro Geral da Companhia de Jesus. O P. Eckart faleceu, já nonagenário, em Polock a 29 de Julho de 1809 «sendo, talvez, o último sobrevivente dos cárceres pombalinos»43.




Memórias de jesuítas expulsos

Como vimos, o P. Eckart corresponde ao protótipo dos diaristas que, durante as expulsões dos jesuítas de Portugal ou Espanha e seu posterior exílio ou, neste caso prisão, decidiram escrever a sua história em forma de memórias44. Costumam ser sacerdotes com um alto nivel cultural que redigem com o objectivo primordial de enaltecer a sua Ordem e ressaltar a injustiça que se cometeu castigando-a; que desconhecem o perdão face aos seus inimigos que apresentam sempre como implacáveis, imorais, caprichosos e ignorantes e sublinham as desgraças que tiveram que padecer os jesuítas -que objectivamente foram muitas- estabelecendo uma evocação símile entre o seu próprio martirio e o sofrido por anteriores membros da sua Regra já elevados aos altares. São escritos extensos, minuciosos, que para além da sua experiência vital incluem comentários críticos a escritos teológicos, políticos ou filosóficos acerca dos quais costumam estar muito bem informados. Memórias que passam de mão em mão, copiando-as, traduzindo-as para que se conservem, prezando-as pela importância que têm como elemento elogiador da sua Ordem e dos seus membros.

Sem dúvida, a abnegação com que conseguem enfrentar as situações extremas que sofrem só é explicável pelo alicerce de uma férrea espiritualidade, o apoio dos seus companheiros e o total convencimento de estarem a servir uma causa justa. Tudo isto, unido à convicção de que os seus escritos possuem uma funcionalidade histórica, explica a pertinácia com que escrevem as suas memórias, nao só enquanto as estão a viver, mas também muitos anos depois de se terem passado, como é o caso deste jesuíta alemão. E é graças a esses valiosos escritos que hoje podemos conhecer, em primeira-mão, uma parte daqueles factos, ainda que seja recomendável assomar-se a eles retirando as cortinas que os seus autores teceram primorosamente com fios de encómio, sem misericórdia para com os seus contrários e com cores sombrias tingidas de dor autêntica.





 
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